domingo, 27 de setembro de 2009

Aristóteles nos convida à Filosofia

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Hoje comentaremos sobre uma das obras mais influentes e famosas da filosofia no mundo antigo, e que hoje infelizmente pouco se discute: o Protreptikos, ou, como se convencionou chamar, Convite à Filosofia.

Trata-se de uma obra peculiaríssima que mostra uma face de Aristóteles muitas vezes desconhecida. Se o bojo do legado aristotélico põe às claras uma mente lógica, supinamente racional, um discurso por vezes muito árido, e uma oposição ferrenha a grande parte do legado de seu mestre, o Protreptikos, por sua conta, retira das sombras um outro homem, quase o seu antípoda. Vemos nela o perfil de um vigoroso discípulo de Platão, um apologeta sangüíneo do conhecimento universal, um devoto da sabedoria que evidencia o seu amor através de uma retórica límpida e fluída, um jovem akademikos que, se ainda não apresentava a originalidade peripatética que viria ser a realização maior do pensamento ocidental, já demonstrava um apego tão entusiasmante à verdade que acabaria por influenciar grandes personagens da filosofia.

Já na antigüidade, sabia-se que o Crates, o cínico de Tebas, teria lido a obra para um sapateiro, contando-lhe que originalmente ela fora dirigida a Themison, um rei do Chipre.

Cícero, no primeiro século antes de Cristo, a adapta e a expande, compondo o seu Hortensius, um convite para os grandes cidadãos de Roma à filosofia grega.

Cinco séculos depois, a realização do orador romano é lida pelo jovem Santo Agostinho, a quem influencia definitivamente para a vida filosófica - que viria a ser exemplar.

Praticamente “morto” na história da filosofia, o Protreptikos voltou à vida em 1869 através do scholar inglês Ingram Bywater, que encontrou fragmentos seus inseridos no texto protréptico (exortativo) do neopitagórico assírio Jâmblico de Chalcis.

Na edição de 2002 sobre a qual me baseei, são dispostos discriminadamente os três pedaços que nos restaram, pedaços que, se não nos permitem o pleno contato com o discurso original, ao menos nos possibilitam um vislumbre muito substantivo, no qual é inevitável a leitura de passagens impressionantes e iluminadoras.


O primeiro achado

Por mais de mil anos, pouco mais se teve acesso à exortação aristotélica do que dois parágrafos, presentes na imensa coleção de ditos da sabedoria antiga que João Stobeu arranjara para o seu filho (hoje em dia publicada sob o título Anthology ou Florilegia), e não se sabia a origem exata de tais trechos.

Só na segunda metade do séc. XIX, com o grande boom da filologia clássica, é que scholars alemães lançaram a hipótese de que os fragmentos seriam parte do Protreptikos perdido de Aristóteles. Eis que no fim do mesmo século, são descobertos diversos papiros em Oxyrhynchus, Egito, em um sítio que teria sido local de reciclagem de papiros. Entre eles, os fragmentos POxy666, um bloco do que aparentemente teria sido um livro muito caro, confeccionado no século II depois de Cristo, com toda a obra transmitida por Stobeu, e que confirmou serem aqueles parágrafos originários do Protrepticus (além de reforçarem a idéia de que Stobeu estaria se baseando numa antologia anterior à sua).

Nesses dois breves parágrafos que sobreviveram à história, Aristóteles ataca a valorização dos bens materiais e defende a valorização da alma e da busca pela sabedoria.


O segundo achado

Jâmblico de Chalcis foi um filósofo e professor assírio que viveu entre os séculos II e III d.C. De perfil neopitagórico, compôs o De Secta Pythagorica, cujo 2º volume constituía o seu própro Protrepticus, onde expunha diversas passagens de Pitágoras, Platão e Aristóteles, embora sem nunca citar suas autorias. A hipótese de alguns destes trechos serem parte da obra perdida do estagirita só foi ser efetivamente investigada em 1869, a partir do jovem scholar inglês Ingram Bywater, e hoje muitos especialistas concordam com a reconstrução (embora ainda haja dúvidas na hora de delimitar quais palavras são de Iâmblico e quais são do próprio Aristóteles).

Exponhamos brevemente tais fragmentos:

No primeiro deles, Jâmblico, já tendo parafraseado Pitágoras e Platão, parte para uma seção repleta de passagens do grande estagirita. Começamos com algumas afirmações notáveis (tradução minha a partir do inglês):

Toda natureza, como se tomada de razão, não faz nada por acaso, mas tudo por algum sentido, e a natureza dedica-se mais a banir o fortuito daquilo que é por algum sentido do que se dedica às artes (technai) – porque as artes são na verdade imitações da natureza.

Ora, essa pode ser uma das passagens mais platônicas do corpus aristotélico!

Em seguida, ele corrobora a noção de seu mestre sobre a alma; de que o corpo existe em razão da alma, e que ela contém em si duas partes: a racional e a irracional, esta por sua vez existindo em razão daquela, com seu fim àquela. As coisas autônomas são sempre superiores às coisas dependentes (“como escravas”)

A verdade é que irá se perceber nestes escritos de Aristóteles que a base sobre a qual gravitam suas exposições é o princípio básico e inescapável de que, como ele diz:

o que é inferior sempre serve em razão do que lhe é superior

Por isso, a contemplação não é boa por si mesma, mas só a contemplação que se dá sobre elementos de ordem e princípios universais. Se a visão se dirige a objetos visíveis, o intelecto se dirige os objetos inteligíveis, superiores àqueles.

Desprovido de percepção e intelecto, um humano torna-se algo muito similiar a uma planta; desprovido unicamente do intelecto, um animal selvagem; desprovido do elemento irracional, mas retendo o intelecto, um homem guarda semelhança com um deus.

É sobre tal passagem que Jâmblico exorta o leitor a observar o reino de Deus e das divindades jamais pelo fim prático, jamais pela subserviência às nossas volições. O “sucesso genuíno” vem de dirigirmos nossa mente à Deus.

É o que reforça a passagem aristotélica seguinte:

uma pessoa virtuosa não é de forma alguma sujeita aos caprichos da sorte

Mas não deixemos de lado a exortação ao bem prático e político da vida, diz Jâmblico, já que “nosso diálogo é com seres humanos [não com deuses]” (expressão provavelmente retirada de Platão, Leis V, 732e3).

Sobre o corpo, Aristóteles nos diz que ele é como uma ferramenta para nossa vida; perigosa e, se mal utilizada, causa-nos muito prejuízo.

O conhecimento para administrar a nossa vida? A Filosofia. Ela é a “sabedoria autoritária”, pois domina inevitavelmente todos os saberes, todas as ciências, todas as técnicas. No que alguns dizem ser uma réplica direta à filosofia de Isócrates, Aristóteles afirma:

Como alguém poderia reconhecer o discurso se não conhecesse as sílabas?

Não é exceção a arte de legislar. A lei é uma forma de sabedoria, e baseia-se nela, assim como a autoridade.


Ora, então, o que nos impede de filosofar? A filosofia é uma atividade fácil, mesmo que desprovida de retorno material. Ela não precisa de ferramentas nem de locais especiais – só precisa do pensamento e da inteligência. Se ela é a mais simples e mais superiora das artes, e se é por ela que buscamos de forma mais pura e intensa a sabedoria e o conhecimento, coisas essenciais à vida humana, nada mais resta a Aristóteles do que afirmar:

É escravidão desejar [simplesmente] viver ao invés de viver bem.

A aquisição da sabedoria é muito mais fácil do que a de quaisquer outros bens. Além disso, a sabedoria é também a virtude mais desejável, melhor que todas as outras virtudes particulares. Para explicar isso, Aristóteles expõe mais exaustivamente algumas noções (platônicas) sobre a composição da alma. Não só o homem tem uma hierarquia em sua essência, mas, dentro da própria alma, há também a parte que manda, possuidora da razão e do intelecto, e a parte que obedece. O que efetivamente somos é a parte racional, afirma o estagirita.

Função suprema do homem = saber a verdade

Funções menores = o prazer, a saúde, etc.

Diz Aristóteles:

A sabedoria não é produtiva, pois o fim precisa ser melhor do que a coisa que vem a ser, e nada é melhor que a sabedoria, exceto a virtude e o sucesso – e nenhum destes é um fim distinto dela.

Raciocina Aristóteles deste modo: viver é desejável por causa da presença da percepção, e a percepção é um tipo de conhecimento, e é porque a alma pode conhecer que nós desejamos viver. Logo, a sabedoria é a virtude mais desejável pelo ser humano (veja como ele exalta a superioridade da visão sobre os outros sentidos no primeiro parágrafo da Metafísica)

Mesmo as pessoas mais ambiciosas não aceitariam ter muitas posses e prazeres imediatos se tivessem que se privar de sua sanidade. Aristóteles dá o exemplo do sonho, que é por vezes algo prazeroso, mas não desejável em si, porque forma imagens falsas da realidade. E o medo da morte, por sua vez, decorre do medo do que não se conhece e que é inevitável. Daí o nosso prazer e contentamento para com tudo aquilo que nos é familiar – seja uma coisa ou uma pessoa. O que é claro e conhecido é para ser amado (agapeton – o amor intelectual)

Mesmo na vida mais duríssima, “seria ridículo”, diz Aristóteles, não manter-se em direção à sabedoria. Somente o viver bem é superior ao simples viver (não veremos ecos desta concepção no cristianismo, que condena o suicídio?).

Ainda sobre a o prazer pela verdade, o estagirita ressalta que a beleza corporal só nos maravilha porque nossa visão é limitada. Não podemos enxergar a má composição das pessoas. Para quem tem um vislumbre do eterno, essas coisas invejadas pelas pessoas parecem muito tolas.

Desde o início, somos naturalmente construídos como se tivéssemos de ser todos punidos, como falam nos ritos de iniciação. Pois há um dito inspirado dos antigos que diz que a alma “paga penalidades” e que vivemos para a reparação de certos grandes pecados.

A conjunção da alma com o corpo parece ser tal penalidade. (Aristóteles conta-nos que os tirrenos muitas vezes torturavam os prisioneiros acorrentando-os a cadáveres, membro a membro, e então a alma parecia se estender sobre aquele corpo!). Por isso é que se diz que “o intelecto é o Deus em nós” e que “a vida mortal contém uma porção de algum Deus” (Hermótimo ou Anaxágoras seria o autor de tais máximas, segundo Aristóteles) – nada mais do que a continuação daquilo que a tradição grega chamava de mikrokosmos.

No próximo post, continuaremos nossa exposição desta obra fantástica e inspiradora.

domingo, 20 de setembro de 2009

O argumento ontológico e as provas de Duns Scotus

Já tratamos acerca do argumento ontológico de Santo Anselmo, de alguns de seus opositores históricos e da pertinente apreciação que lhe faz Mário Ferreira dos Santos. Agora, apresentaremos um resumo da leitura do filósofo brasileiro sobre como o escolástico Duns Scotus tira proveita do argumento anselmiano para construir suas provas da existência de Deus, do ser infinito.


Ao começar a sua exposição das provas escotistas, Mário reafirma a noção dos escolásticos e do islâmico Avicenna de que o objeto primeiro do conhecimento é o Ser (a Unidade, o Um).

Diz Mário na página 152 do Homem Perante o Infinito:

Não há nenhuma objeção normal à existência do Ser, porque não aceitá-lo seria afirmar o nada absoluto, o qual já estaria negado pela própria afirmação que dele se fizesse.


Ora, tal nada mais é do que uma reafirmação de um argumento tradicionalíssimo, que vem desde Parmênides, um dos avôs da Filosofia. Abaixo, exponho duas das passagens mais importantes da história do pensamento ocidental (tradução minha a partir de uma tradução inglesa):

Fragments, VIII, 1-12:

Só resta um caminho, que é dizer que [o ser] é (estin).
Nele há vários sinais de que o que é, é incriado (ageneton) e indestrutível (anolethron),
pois é completo (oulomeles) , imóvel (atremes) e sem fim (ateleston).
Nem nunca foi, nem nunca será; pois é agora, todo de uma vez, um contínuo. (nun estin homou pan en, hen, syneches)

Pois que tipo de geração você lhe buscaria? De que forma e de onde ele teria surgido?
Não permitirei que diga nem que pense que ele veio do que não é (me eontos); pois o que não é (ouk esti) não pode ser nem expresso nem pensado. Que necessidade também haveria dele surgir antes ou depois, se procede do nada (ek medenos)?
Desta forma, ele deve ser completamente (pampan) ou não ser.

Fragments, VIII, 19-24

(...)como poderia [o ser] vir a ser (to eon)? Se viesse a ser,
não é, nem é se o será no futuro.
Portanto o vir-a-ser (genesis) é extinto e a destruição (olethros) ignorada.
Nem [o ser] é divisível (diaipeton), pois é todo um só (homoion),
e nem é mais [aqui], pois impediria que fosse coeso (synechesthai),
nem é menos [ali], mas é pleno de ser (empleon estin eontos)

http://philoctetes.free.fr/parmenides.pdf


Insiro aqui também o comentário de um filósofo italiano, Domenico Pacitti, pois o achei mais pertinente do que qualquer comentário que eu fosse fazer (tradução e grifos meus):

O argumento, então, é sublime em sua simplicidade: somente o ser é, pois não-ser não pode ser. O ser é portanto um: a existência colateral do não-ser significaria dois, de onde uma infinitude de divisões teria então surgido. Agora, uma vez que o que pode ser pensado e o que pode ser é a mesma coisa, qualquer pensamento da coisa que não é será impossível. Pois um pensamento daquilo que não é será um pensamento de nada, e por isso nem será um pensamento.

Ou como aponta Mário Ferreira: “só podemos conhecer o que é possível de tornar-se um; melhor diríamos, o que é alguma coisa”.


Mais adiante, o filósofo brasileiro ressalta que a única coisa não evidente a respeito do Ser é a de que ele seja infinito, e é justamente esta questão que mobiliza os teólogos.

Francisco Suárez (renomadíssimo pensador da escolástica tardia), por exemplo, afirma: há alguma coisa, e esse alguma coisa é ser, tem aptidão para existir, incluindo o ser atual, que se revela evidentemente, e o ser potencial, que não existiu mas teve aptidão para existir (como o filho de Napoleão, por exemplo). O ser potencial não é, assim, um puro nada, e tal noção mostra-se consonante à tradição que começou em Parmênides, embora sob um novo aspecto (trataremos mais disso em um post futuro).

Esta exposição é mais do que necessária para compreendermos satisfatoriamente o pensamento de Duns Scotus. Como o próprio Mário faz questão de sublinhar, é impossível uma discussão apropriada da questão sem uma familiaridade mínima com os fundamentos da metafísica que alicerçam a construção filosófica do Doctor Subtilis (cognome derivado, aliás, da sutileza e peculiaridade do pensamento escotista, de acesso muito mais difícil do que o tomista).


Mas, então, o que é o ser infinito para Duns Scotus?

Ora, como já bem demonstramos, o ser infinito não pode ser entendido extensivamente, mas como o ser em sua intensidade mais absoluta.

ser finito = ser contingente = dependente de outro para ser

O ser finito tende para o extrínseco e para a sua finalidade intrínseca, ele “busca perfeições que lhe faltam”, mergulha-se num eterno “querer mais”. Já o ser infinito é um ser perfeito, mais do que isso, oniperfeito, é o ser enquanto ser (e nada mais) de Aristóteles.


O que propõe Scotus é uma via ascensional ontológica, partindo do “ser comum” para chegar ao ser infinito. É evidente, afirma Mário, que, dentre as coisas que conhecemos, há coisas criadas e há coisas incriadas (pois, lembremos, nada advém do nada).

Criadas (por outra) – possíveis, finitas, ab alio

Incriadas (de per si) – necessárias, infinitas, a se

Fica muito claro, assim, que a prova escotista funda-se no princípio da causalidade – um tanto diferente do modo tomista, mas corroborando as suas vias.


Há quem objete contra à prova da causalidade ao admitir uma infinidade de causas. Bem, contra tais objeções, Scotus busca provar três proposições que colocariam a pá de cal sobre a questão. Vamos a elas:

1) Que é impossível uma infinidade de causas essencialmente ordenadas

Se não houvesse uma causa primeira, as causas seriam infinitas. Bem, o infinito numérico, quantitativo, só existe em potência. Ademais, admitida a infinitude causal, não se poderia falar em anteriores e posteriores. Não bastasse isso, a causa desta causalidade infinita seria ainda a primeira e mais perfeita.

2) Que é impossível uma infinidade de causas acidentalmente ordenadas

A causa acidental não suprime a causa primeira. De algum lugar deve ter-se originado a causa acidental primeira ou “primeiras”. Do contrário, teríamos que lidar novamente com o absurdo de causas infinitas.

3) Que mesmo negada toda ordem essencial, a regressão ao infinito segue sendo impossível

O primeiro ser efetivo é existente em ato, pois ele existe por si mesmo. Voltando a Parmênides; um não-ser não pode criar e muito menos criar-se ser.

Alguns acusam esta terceira prova de apriorística. Será mesmo?

Perguntemo-nos: é possível um ser por outrem? Ora, tal é evidente pela experiência. E é possível um ser por si? Se é possível, existe em si mesmo. Se não, voltamos à série infinita de causação. Trata-se, portanto, de uma conclusão plenamente inteligida, a fortiori.


Agora concentremo-nos nas observações mais peculiares de Mário Ferreira sobre o Doutor Sutil.

Segundo ele, Duns Scotus era ao mesmo tempo platônico, avicenista e pitagórico, além de ter aproveitado conceitos da Física de Aristóteles. Lembremo-nos que, para Mário, os pitagóricos teriam sido os verdadeiros grandes pioneiros do conhecimento científico, porquanto eles já afirmarem que a verdade máxima está nos entes necessários.

Tal tradição trespassou a filosofia grega e chegou até os escolásticos, que então se tornaram os responsáveis pela matematização qualitativa do conhecimento, ou seja, não aquela matematização grosseira dos modernos, mas uma matematização "responsável", concreta. Ao contrário destes, jamais os escolásticos perderam a noção de que o conhecimento não é só quantitativo, mas também qualitativo, axiológico, valorativo. Para eles, a quantificação da lógica mostra-se claramente um equívoco, pois o raciocínio tem sutilezas.

Diz Mário nas páginas 162 e 163(grifos meus):

Todas as idéias físicas poderão ser construídas, mas, qualquer que seja o conhecimento, haverá sempre a distinção entre determinante e determinado, entre produzível e produtivo, entre effectibilitas e effectivitas, etc. É trabalhando com tais conceitos, estruturas ontológicas da mathesis [a instrução suprema pitagórica, que nos levaria da esquemática humana às estruturas primeiras da realidade], que Duns Scotus procura construir, e com grande êxito, as suas provas, que se fundamentariam, assim, ontologicamente, de modo necessário e não apenas contingente.


Mário é muito feliz ao resumir a diferença nos tratamentos clássicos da causa primeira: as provas aristotélicas e aquinianas querem provar que “há um motor que é primeiro” e as provas escotistas querem provar (e o fazem) que “há um primeiro que é motor”. A tradição aristotélica de Averroes e Aquino afirma que cabe à física, à natureza, provar a existência de Deus. A tradição anselmiana (e parmenidiana, por que não?) afirma que tal tarefa cabe à Metafísica. Para Duns Scotus, a infinidade de poder e movimento do motor aristotélico não pode provar a infinidade pura e simples do Deus cristão.

Em Aristóteles, temos um ser de infinidade extensiva.

Em Duns Scotus, temos um ser de infinidade intensiva.


O que Duns Scotus faz então é redefinir o argumento de Santo Anselmo, o confirmando. Nas palavras de Mário (p. 166):

Para Duns Scotus, o ser é conhecido por si, e a infinidade não lhe é contraditória, pois é perfeitamente inteligível. Há, portanto, compatibilidade entre a infinidade e o ser, e se a infinidade é uma perfeição possível, o ser supremo é necessariamente infinito.

Ou seja, o que está na mente está no Ser. É “aquele que não podemos conceber outro maior”, como diz Santo Anselmo. Nada pensado pela mente pode ultrapassar o ser.

Ao meu ver, irrefutável.

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domingo, 13 de setembro de 2009

O argumento ontológico de Santo Anselmo - parte IV

ANÁLISE CRÍTICA DE MÁRIO FERREIRA DOS SANTOS

É o argumento de Santo Anselmo assim tão frágil? De modo algum, diz Mário.

Importante ressaltar: é preciso saber de antemão que Santo Anselmo, inaugurador da Escolástica, pertencia à vertente genuinamente (neo)platônica. Para ele o "mundo das Formas" tinha uma importância basilar.


As objeções ao argumento anselmiano em geral dizem que ele prova a realidade apenas da idéia.
Mas que realidade? A empírica, a física ou uma transfísica?

Mário diz que a única realidade que resta ao enunciado de Deus é a transfísica (por isso São Tomás de Aquino criticar no argumento o seu "salto ilegítimo" do lógico para o ontológico).

Deus não está no empiria, sublinha Mário, assim como a ilha perdida de Gaunilon é tal qual comparada ao conhecimento empírico. O Ser não é empírico - o Ser é infinito e não pode ser pensado como não-Ser.

A concepção de um "Ser que nada de maior se pode conceber" é um símbolo da vivência do Ser.
Por mais que tentemos ir além, o mais superior será sempre "o mais superior" - não pode haver algo mais superior que o mais superior. Cada "tentativa", cada concepção superior será sempre um símbolo deste Ser.

Podemos negar a existência de coisas que existem, mas negar o Ser é negar todo o fundamento do qual se participa. É negar a hierarquia das perfeições (ao modo platônico).

Diz Mário na página 91 do seu O Homem Perante o Infinito:
Todo filósofo que levar avante e com segurança o seu pensamento, mesmo ateísta, terá de concordar que todas as perfeições, surgidas no processo do devir, estavam contidas, em máximo grau naquele Ser que não tem princípio nem fim, pois, do contrário, teria que admitir que tais perfeições surgiram do nada.


Duns Scotus
renovou os argumentos de Anselmo e os tornou irrefutáveis.
No próximo post, veremos o que o nosso nobre Mário Ferreira tem a dizer sobre isso.

O argumento ontológico de Santo Anselmo - parte III

A CRÍTICA MODERNA


Refutação de Hellin - em nenhuma proposição o predicado pode ter maior realidade que o sujeito. A prova de Deus não pode depender do predicado a priori "máximo excogitável" (este precisa ser demonstrado a posteriori).
Tais argumentos servem como objeção também às defesas de Leibniz e a Descartes.

Refutação de Muñiz - quem pensa em Deus como o ser mais perfeito que se possa conceber, pensa-o também como realmente existindo. Pensar como existente não significa que realmente exista. A realidade do pensamento confronta a realidade da existência, como ocorre na ignorância dos homens, no desvio de seus atos, etc.

terça-feira, 8 de setembro de 2009

O argumento ontológico de Santo Anselmo - parte II

Abaixo, o resumo parcial da defesa que Mário Ferreira dos Santos faz do argumento ontológico em sua fulgurante obra O Homem Perante o Infinito.


Propter Leibniz

Leibniz diz que, se o Ser necessário não existe, não há ser possível.

Toda a realidade é, ela não tem como não ser.

E mesmo o que nega a realidade, faz parte do Ser.


Todo possível faz parte do Ser, pois se é possível, pode existir como pode não existir. Se existir, sua existência é contingente. PORÉM a sua possibilidade é NECESSÁRIA.

Conclusão: todo possível é necessário, e tudo está no ser.



Diferença entre Ser e Estar

Para algo ESTAR no ponto X e no tempo Y, ele tem que necessariamente não estar no ponto D e no tempo Z, por exemplo. Estar é finito.

Para algo SER, ele não necessita NÃO SER. Ele simplesmente é. Mesmo quando pensado como NÃO SENDO, ele é. Ou seja, a realidade, por si só, já é "positiva". Do contrário, não haveria nada.

Realidade = Ser = existir

Existência = UM (pitagórico) = "positividade"



Propter Locke

Locke dizia que não há um ateu que negue um ser primeiro, eterno e necessário. A diferença entre um teísta e um ateu para ele é que o teísta crê que o Ser é cognoscente, enquanto que o ateu crê que o Ser é "matéria cega" (natureza, etc).

Materialistas, ateus e outros não negam, assim, o Ser eterno, por isso são monistas.



Segundo Mário, pensar outro mundo, outras realidades sem a nossa lógica não refuta o argumento, pois "o que quiser pode ser imaginado, mas não se podem negar as leis do Ser". Por mais que a Verdade "mudasse" de acordo com uma "nova ordem", pois a Verdade desta ordem é desta ordem, pois a Verdade está no Ser (mesmo no mundo mais diferente e/ou alienígena possível, a Realidade É).

O argumento ontológico de Santo Anselmo - parte I

Excertos fundamentais do Proslógio que fundamentam o histórico argumento ontológico de Santo Anselmo, seguidos por um resumo da objeção do Monge Gaunilon e da conseqüente tréplica anselmiana:


Capítulo II
Que Deus existe verdadeiramente

Então, ó Senhor, tu que nos concedeste a razão em defesa da fé, faze com que eu conheça, até quanto me é possível, que tu existes assim como acreditamos, e que és aquilo que acreditamos. Cremos, pois, com firmeza, que tu és um ser do qual não é possível pensar nada maior. Ou será que um ser assim não existe porque “o insipiente disse, em seu coração: Deus não existe”? [Sl 13,1] Porém, o insipiente, quando eu digo: “o ser do qual não se pode pensar nada maior”, ouve o que digo e o compreende. Ora, aquilo que ele compreende se encontra em sua inteligência, ainda que possa não compreender que existe realmente. Na verdade, ter a idéia de um objeto qualquer na inteligência, e compreender que existe realmente, são coisas distintas. Um pintor, por exemplo, ao imaginar a obra que vai fazer, sem dúvida, a possui em sua inteligência; porém, nada compreende da existência real da mesma, porque ainda não a executou. Quando, ao contrário, a tiver pintado, não a possuirá apenas na mente, mas também lhe compreenderá a existência, porque já a executou. O insipiente há de convir igualmente que existe na sua inteligência “o ser do qual não se pode pensar nada maior”, porque ouve e compreende essa frase; e tudo aquilo que se compreende encontra-se na inteligência.

Mas “o ser do qual não é possível pensar nada maior” não pode existir somente na inteligência. Se, pois, existisse apenas na inteligência, poder-se-ia pensar que há outro ser existente também na realidade; e que seria maior.

Se, portanto, “o ser do qual não é possível pensar nada maior” existisse somente na inteligência, este mesmo ser, do qual não se pode pensar nada maior, tornar-se-ia o ser do qual é possível, ao contrário, pensar algo maior: o que, certamente, é absurdo.

Logo, “o ser do qual não se pode pensar nada maior” existe, sem dúvida, na inteligência e na realidade.


Capítulo III
Que não é possível pensar que Deus não existe

O que acabamos de dizer é tão verdadeiro que nem é possível sequer pensar que Deus não existe.

Com efeito, pode-se pensar na existência de um ser que não admite ser pensado como não existente. Ora, aquilo que não pode ser pensado como não existente, sem dúvida, é maior que aquilo que pode ser pensado como não existente. Por isso, “o ser do qual não é possível pensar nada maior”, se se admitisse ser pensado como não existente, ele mesmo, que é “o ser do qual não é possível pensar nada maior”, não seria “o ser do qual não é possível pensar nada maior”, o que é ilógico.

Existe, portanto, verdadeiramente “o ser do qual não é possível pensar nada maior”; e existe de tal forma, que nem sequer é admitido pensá-lo como não existente. E esse ser, ó Senhor, nosso Deus, és tu.

Assim, tu existes, ó Senhor, meu Deus, e de tal forma existes que nem é possível pensar-te não existente. E com razão. Se a mente humana conseguisse conceber algo maior que tu, a criatura elevar-se-ia acima do Criador e formularia um juízo acerca do Criador. Coisa extremamente absurda.

E, enquanto tudo, excluindo a ti, pode ser pensado como não existente, tu és o único, ao contrário, que existes realmente, entre todas as coisas, e em sumo grau. Então, por que o insipiente disse em seu coração: “Não existe Deus”, quando é tão evidente, à razão humana, que tu existes com maior certeza que todas as coisas? Justamente porque ele é insensato e carente de raciocínio.


Capítulo IV
Que o insipiente disse em seu coração aquilo que é impossível pensar

Mas como o insipiente pôde dizer, em seu coração, aquilo que nem sequer é possível pensar? Ou como pôde pensar aquilo em seu coração, quando “dizer no coração” nada mais é do que pensar? Se, verdadeiramente, ele disse isso em seu coração, na verdade, também, o pensou. Mas, na verdade, ele não disse isso em seu coração, porque, justamente, não podia pensá-lo.

Com efeito, pode-se pensar, ou dizer no coração, uma coisa de duas maneiras: pensando na palavra que expressa a coisa, ou compreendendo a própria coisa. No primeiro sentido, é possível pensar que Deus não existe; no segundo, não. Quem, por exemplo, compreende o que são a água e o fogo, sem dúvida, não pode pensar que os dois elementos sejam realmente a mesma coisa. Entretanto, se pensar apenas nas palavras água e fogo, pode imaginar as duas coisas como idênticas. Assim, quem compreende o que Deus é, certamente, não pode pensar que ele não existe, mas o poderia, se repetisse na mente apenas a palavra Deus, sem atribuir-lhe nenhum significado, ou significando coisa completamente diferente.

Deus, porém, é “o ser do qual não é possível pensar nada maior”, e quem compreende bem isso sem dúvida compreende, também, que Deus é um ser que não pode encontrar-se no pensamento. Quem, portanto, compreende que Deus é assim, não consegue sequer imaginar que ele não exista.

Obrigado, meu Deus. Agradeço-te, meu Deus, por ter-me permitido ver, iluminado por ti, com a luz da razão, aquilo em que, antes, acreditava pelo dom da fé que me deste. Assim, agora, encontro-me na condição em que, ainda que não quisesse crer na tua existência, seria obrigado a admitir racionalmente que tu existes.


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OBJEÇÕES DO MONGE GAUNILON

1) A inteligência pode conter idéias duvidosas e até falsas em conceito (embora compreendidas ao serem referidas - objetos, etc.)

2) A inteligência só pode compreender/realizar/imaginar um conteúdo com que tenha contato perceptivo/cognitivo

3) É previamente necessário que eu tenha certeza de que este Ser Supremo exista. Neste caso, estará para mim fora de dúvida que subsiste em si mesmo.

4) A existência depende da prova real; não pode estar só no espírito (todos os entes que conhecemos possuem um referencial empírico)

5) O argumento da Ilha Perdida: O argumento de Gaunilo supunha a existência de uma ilha perfeita a partir de seu conceito, pois uma ilha perfeita que só existe na imaginação não é tão boa como uma que exista na realidade, pois esta existiria no pensamento e na realidade. Logo, qualquer ilha que exista na realidade seria melhor do que aquela que existe somente no pensamento. Portanto esta ilha perfeita existe, pois de outra maneira estaríamos nos contradizendo. Esta ilha segundo o argumento de Gaunilo nunca foi encontrada, mas temos que dizer que ela existe e, portanto está perdida, mesmo se fosse percorrido todo espaço do planeta e ela não fosse encontrada.


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A TRÉPLICA DE SANTO ANSELMO

1) Se o pensamento pode admitir a existência de Deus - ou de qualquer coisa - Ele existe necessariamente.

2) Se existe e não existe ao mesmo tempo o Ser acima do qual não se pode imaginar uma coisa mais perfeita, é, pois, falso que não haja algo de real acima do qual não se pode conceber nada.

3) Todo objeto é passível de ser pensado como não existente, pois a existência e o tempo não são integrais e onipresentes (exceto Deus).
"Mas o ser acima do qual nada se pode imaginar, se existe, não pode ser concebido como não existente; se fosse de outro modo, não seria tal que nada se pode conceber acima dele, o que é contraditório."

Não se pode, assim, negar a existência do ser que existe em todas as partes.

"Tudo o que pode ser pensado não existir, se existe, não é aquilo acima do qual nada se pode pensar de maior".

4) A própria partícula "nada maior pode se conceber" implica a percepção de um ser maior que aquele que supõe este objeto de seu pensamento poderia muito bem não existir. O mesmo objeto não pode ao mesmo tempo ser pensado como existente e não pensado.

domingo, 6 de setembro de 2009