sábado, 23 de janeiro de 2010

O Banquete de Florença – III

LIVRO II

Cap. 13

Ao modo das esferas, cada ciência gira ao redor de seu sujeito sem movê-lo, porque, como mostrava Aristóteles, nenhuma ciência demonstra o seu próprio sujeito, mas o pressupõe.

A segunda semelhança é o iluminar de um e de outro, porque cada céu ilumina as coisas visíveis e assim cada ciência ilumina as inteligíveis.

A terceira semelhança é na cumprimento das substâncias no cosmos. Segundo Dante, todos os filósofos, embora o proponham de modo diverso, admitem que os céus são os responsáveis. Para Platão, Sócrates e Dionísio Acadêmico, por exemplo, especialmente a origem das almas humanas está nas estrelas.

Dante agora trata de especificar o seu paralelismo simbólico entre a ordem dos céus e a ordem das ciências:

7 céus mais próximos de nós (os planetas da astrologia tradicional) – o Trivium e o Quadrivium

8º céu – física e metafísica

9º céu – moral

10º céu, acima de todos e imóvel – ciência divina, teologia

O céu da Lua lembra a Gramática – porque a incidência do Sol sobre aquele astro varia como variam os raios da razão na gramática, os vocábulos e as regras flutuando conforme as línguas e suas variações no tempo. Como dizia Horácio em sua Arte Poética, “muitos vocábulos que já sucumbiram renascerão”.

Mercúrio remete à Dialética, já que esta é a ciência de menor substância. Ademais,

É mais velada que qualquer outra ciência, porquanto procede com argumentos mais artificiosos e necessitados de provas do que qualquer outra.

O céu de Vênus nos leva à Retórica, a mais doce das ciências. Vênus aparece de manhã, como a Retórica diante do ouvinte, e aparece à noite, como aquela arte expressa na forma escrita e lida pelo orador.

O Sol é a Aritmética. Sua luz ilumina todas as outras ciências – todos os sujeitos são tomados sob algum aspecto numérico, como demonstrava a tradição pitagórica. Ademais, o olho do intelecto não pode contemplá-lo diretamente, pois o número em si é infinito, “e isso nós não conseguimos compreender”, diz Dante.

Marte representa a Música. Marte é o 5º céu, o do meio, e por isso simboliza as relações, além da sua cor vermelha indicar a presença de vapores ígneos cujas manifestações no céu, já testemunhadas por antigos astrônomos, significam “morte de reis e modificação de reinos”. A Música, por sua vez, atrai os espíritos humanos “que são como vapores do coração”, afetando profundamente os que a ouvem, e lida ela essencialmente com relações que, quanto mais belas, mais harmoniosa tornam a peça.

Em Júpiter, temos a Geometria. É um astro muito branco, prateado, de constituição temperada, movendo-se entre o calor de Marte e o frio de Saturno. Analogamente, a Geometria move-se entre o ponto (princípio) e o círculo (perfeição), como mostrava Euclides.

Além disso, a Geometria é extremamente branca, porquanto é sem mácula de erro e extremamente certa de per se e por meio de sua auxiliar, que se chama Perspectiva.

Por fim, o céu de Saturno por duas características pode ser comparado à Astrologia: pela grande translação que necessita para se completar, da mesma forma que a Astrologia exige um grande estudo, e também por ser, como esta ciência, a mais elevada de todas e a mais nobre. Segundo Dante, a Astrologia trata do movimento celestial e exige, nesta empresa, perfeição, constância, princípio regular, e se há nela alguma falha, não provém da ciência em si, mas da negligência e indolência de quem a utiliza.

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Cap. 14

Indo adiante na contemplação das esferas, o florentino compara o céu estrelado à Física por algumas características e à Metafísica por outras.

Contam os egípcios 1022 estrelas no firmamento, sendo duas indicativas do movimento local (ponto a outro), vinte do movimento por alteração (porque acima de dez, só há números que alterem o próprio dez, e o vinte “é a mais bela alteração e é própria de si mesmo”) e as outras mil estrelas do movimento de crescimento, porque nominalmente o mil é “o maior número, não podendo crescer mais senão multiplicando este mesmo”: esses três movimentos estão de acordo ao que Aristóteles trata na Física.

Já à Metafísica Dante relaciona a Galáxia, a Via Láctea, que para Aristóteles, Ptolomeu e Avicenna trata-se de uma multidão de estrelas que nossos olhos não conseguem distinguir. Ora, na ciência do ser enquanto ser, as substâncias primeiras só são compreendidas por seus efeitos. Além disso, enquanto o movimento de revolução aponta para a contingência das coisas naturais tratadas pela Física, pela circunvolução vislumbramos a serena eternidade da Metafísica:

Pelo movimento quase insensível que realiza de ocidente para oriente de um grau a cada cem anos indica as verdades metafísicas, as quais tiveram início com a criação de Deus e não terão fim.

Quanto ao nono céu, o céu cristalino do primum mobile, referencia-se a Filosofia Moral, que, segundo Tommaso (de Aquino), é quem nos bem dispõe para as outras ciências. É o céu cristalino quem ordena a revolução de todos os outros; se deixasse de se mover, se a Filosofia não existisse, todo o resto cairia em desordem.

Finalmente,

O Céu empírico, por sua paz, se assemelha à Ciência Divina, que está repleta de toda paz e que não tolera contradição alguma de opiniões e de argumentos sofistas por causa da excelentíssima certeza de seu objeto, que é Deus.

“Deixo-vos a paz, a minha paz vos dou” diz Cristo em João, 14:27.

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Cap. 15

Debruçado sobre um dos versos de sua canzione, “Questi mi face una donna guardare” (“Este me leva a olhar uma dama”), explica Dante que esta donna é a Filosofia, uma “donna piena di dolcezza, ornata d'onestade, mirabile di savere, gloriosa di libertade” (“dama plena de doçura, ornada de honestidade, admirável em saber, gloriosa em liberdade”). O florentino ressalta estar seguindo passo a passo o amor que por ela nutriram Cícero e Boécio. “Chi veder vuol la salute, Faccia che li occhi d'esta donna miri” diz o verso seguinte da canzione: quem quiser alcançar a salvação, que mire os olhos dessa dama.

Ó suavíssimos e inefáveis semblantes, raptores subitâneos da mente humana, que nas demonstrações dos olhos da Filosofia apareceis, quando ela raciocina com seus amantes! Realmente em vós está a salvação, pela qual se torna bem-aventurado aquele que vos contempla e salvo da morte da ignorância e dos vícios.

Fundando-se certamente na idéia de “assombro” (θαυμάζω) de que fala Aristóteles, Dante afirma que, por meio da Filosofia, serão vistos “os adornos dos milagres”,

porque os adornos das maravilhas é ver as causas delas, que ela [a filosofia] demonstra, como no princípio da Metafísica parece entender o filósofo quando diz que ao ver tais adornos os homens começaram a namorar essa dama.

segunda-feira, 4 de janeiro de 2010

O Banquete de Florença – II

LIVRO II
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Cap. 1
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Hora de zarpar para o oceano, diz Dante. Este é um capítulo seminal nos trabalhos do florentino, porque é aqui que ele expõe os famosos quatro níveis de sentido na interpretação de uma obra. São eles:

1) Literal
2) Alegórico
3) Moral
4) Analógico

Sobre a interpretação alegórica, Dante distingue entre a alegoria dos poetas e a alegoria dos teólogos. A alegoria teológica insiste na veracidade, na realidade dos quatro níveis de sentido, sempre se referindo a algum aspecto do Cristo histórico, enquanto os poetas admitem um nível literal que não seja verdadeiro, que seja somente “veritade ascosa sotta bella menzogna”, verdade escondida sob uma bela mentira.

Segundo Dante, o nível literal sempre vem primeiro, porque não se pode passar para o interior de algo sem se passar antes pelo exterior, assim como é impossível atingir a forma sem antes perceber alguma matéria. Aristóteles, na Física, diz que a natureza dispõe o nosso pensamento de forma a preferencialmente nos dirigirmos do mais conhecido para o menos conhecido (fazendo a analogia com as línguas, o latim prima por esta disposição natural em sua sintaxe, exprimindo as coisas na ordem em que elas impressionam o espírito, enquanto o português, por exemplo, segue uma ordem gramatical, artificial, como mostrava Sebastião Albuquerque no excelente Arte de traduzir de latim para portuguez, reduzida a principios (1818)).
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Cap. 3
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Embora não saibamos a natureza das coisas superiores como sabemos das inferiores, o mesmo o conhecimento limitado daquelas nos deleita muito mais (Aristóteles).

Dante cita os erros astronômicos do estagirita, porém lembra que no livro XII da Metafísica ele se desculpava de antemão por seguir “obrigatoriamente” a opinião dos especialistas de sua época.

O florentino aborda o sistema de Ptolomeu, listando as 9 esferas celetes, ou céus móveis, que irão aparecer no Paradiso de Dante:

1ª céu – Lua
2ª céu – Mercúrio
3ª céu – Vênus
4ª céu – Sol
5ª céu – Marte
6ª céu – Júpiter
7ª céu – Saturno
8ª céu – Estrelas

O 9º é o primum mobile, imperceptível aos sentidos, exceto pelo movimento dos outros oito. Exterior a todos esses, os católicos colocam um décimo céu, o céu empíreo, ou “céu das chamas”, ou “céu luminoso”, que seria “imobilidade e paz”, lugar dos espíritos santificados, contendo a si mesmo. É o edifício supremo – não está no espaço, mas formado unicamente na “mente primária” (a protonoe dos gregos).

Cada céu abaixo do décimo possui dois pólos estacionários, que no nono céu são também fixos, imutáveis. Cada céu tem um equador onde se dá o seu mais rápido movimento, por compensação espacial. No equador é onde há mais vida, mais forma, mais virtude, porque se encontra mais próximo do céu imediatamente superior.

Por fim, Dante afirma que esta seqüência de dez céus não chega a compreender todos os que existem, e cita o epiciclo de Vênus, que possui a excentricidade de conter uma esfera dentro de outra esfera.
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Cap. 4
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Quem move essas esferas? As inteligências, ou anjos.

Para Aristóteles, eram de número limitado, enquanto seu mestre Platão adotava a infinitude de formas. Para os pagãos, elas equivalem aos seus deuses.

Dante diz que todos estes falharam em suas percepções. Segundo ele, uma vez que a vida contemplativa é superior à vida ativa, governante, o número de esferas deve necessariamente ser muito maior do que o revelam seus efeitos, porque há muito mais bênção na pura contemplação do que na ação próxima.

Nenhum efeito pode ser maior do que a sua causa; assim, Deus, causa de tudo e de todos os intelectos, está por demais além de nossa percepção em suas ações.
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Cap. 5
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Jesus Cristo é o “ministro” dos anjos. Dante segue a ordem hierárquica angélica estabelecida por Gregório no livro XXXII de seu Moralia:

1ª ordem: Serafins (acima de todos), Querubins, Tronos
2ª ordem: Dominações, Principados, Potestades
3ª ordem: Virtudes, Anjos, Arcanjos

(no Paradiso, Dante adota a ordem de Dionísio Areopagita: Serafins, Querubins, Tronos, Dominações, Virtudes, Potestades, Principados, Arcanos e Anjos)

Podemos contemplar a divindade por qualquer uma das hierarquias.

Na 1ª, contemplamos o Pai, na 2ª o Filho e na 3ª o Espírito Santo.
O Serafim percebe mais da primeira causa (Pai) do que qualquer outro anjo.
O Querubim contempla o Pai em relação ao Filho.
As Potestades contemplam Pai em relação ao Espírito Santo.

Algumas das ordens originárias tiveram sua queda para o Inferno.

Segundo Dante, os Anjos são simbolizados pela Lua, os Arcanjos por Mercúrio e os Tronos por Vênus. Como diz o Salmo 18: “Os céus publicam a glória de Deus, e o firmamento anuncia as obras das suas mãos”.

No capítulo 6, o florentino afirma que os anjos não possuem corpo, e, por isso, não sentem nem usam a linguagem. O ouvir deles é a atividade intelectual.
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Cap. 7
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Devemos notar que as coisas têm que ser chamadas de acordo com a maior nobreza de sua forma (...) assim, quando dizemos que um homem vive, o que se pretende dar a entender é que ele usa a razão

É por isso que o homem que se fundamenta no sensível não vive como um homem, mas vive a vida de “um asno”, como dizia Boécio.

O conflito de Dante: o desejo de compreender a “doçura” da sabedoria é tão imenso que faz a sua alma ter o anseio de morrer, de ir “para lá” e ter a mais doce das contemplações do universo. É por isso que o florentino diz que os olhos da Donna (Filosofia) não devem ser observados por qualquer um que tema as visões de angústia. A contemplação anelada fará tudo parecer extrinsecamente carente de beleza, enquanto, em seu âmago, as coisas se tornarão realmente belas.
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Cap. 8
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Por que o “novo” amor, este, que é efeito da ação das Inteligências (esferas), tem que destruir o amor anterior?

Dante responde que isso é obra dos próprios sujeitos na preservação do amor, assim como a natureza humana transfere a sua própria preservação na forma humana de pai para filho porque não pode preservar seu efeito perpetuamente no pai.

Para Dante, a maior das tolices é acreditar que não há vida apos a morte. Todos os grandes sábios concordam com a imortalidade d’alma. Toda crença, até mesmo a pagã, crê nisso. O homem é o mais perfeito dos animais; se nossa crença natural na outra vida fosse errada, fosse vã, seríamos, pelo contrário, os piores dentre todos os animais; a maior perfeição do homem – a razão – seria, assim, sua maior imperfeição.

Outra prova da imortalidade d’alma para Dante são os nossos sonhos, pois aquilo que é “revelado” neles deve necessariamente ser imortal.

Nossos corpos é que não nos permitem “ver” perfeitamente.

Com a , vemos perfeitamente.

Com a razão, vemos com sombras (mistura mortal/imortal).