sábado, 26 de dezembro de 2009

O Banquete de Florença - I

Olá, amigos, peço desculpas pela minha relativa ausência no último mês.
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Felizmente, tenho um belo subterfúgio para me justificar: a esquematização da Revista Filosofia Concreta, além da preparação de outros projetos culturais que vêm por aí em 2010; fiquem atentos.
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De todo modo, prometo voltar a postar mais seguido neste blog, rotina da qual me aproveito para “oxigenar” minhas antigas leituras filosóficas, o que sempre rende lá os seus frutos.
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Com isto, tratemos agora desta nossa caríssima atividade.
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imageApresentaremos nas próximas semanas algumas das tantas pérolas que podem ser encontradas na obra Convivio, de Dante Alighieri (em geral traduzida como “O Banquete”, inspiração platônica). Aproveitar-me-ei do resumo exposto em Dante, livro de W.B. Lewis, de modo a não atalhar a leitura daqueles que ainda desconheçam a obra:

Com o intuito de ilustrar os méritos que reconhecia na canzone como forma poética, Dante propõe, no Convivio, examinar uma série de canzoni escritas por ele próprio ao longo de vários anos, sem deixar de refletir, detidamente, sobre a questão do autor que analisa a própria obra. O Convivio, como o título já indica, é um banquete, uma festa de sabedoria em que todos os homens de boa vontade são convidados a participar – com base na premissa de que Aristóteles está certo quando afirma, no início da Metafísica, que todos os homens, por natureza, aspiram ao conhecimento. Nesse banquete, o cardápio inclui uma seqüência de 14 pratos, 14 canzoni a serem examinadas e digeridas. Na verdade, o autor analisa apenas três, visto que o tratado é interrompido após a conclusão do quarto livro, i.e., após cerca de 250 páginas.

O Convivio foi escrito entre 1306 e 1308. É possível que a primeira parte da obra tenha sido composta em Lucca, logo após a interrupção do De Vulgari Eloquentia. O restante teria sido elaborado “na estrada”, por assim dizer. Essa condição itinerante é visível no texto, ao mesmo tempo o mais abstrato e o mais pessoal escrito por Dante até então. A postura pessoal é, precisamente, a do andarilho infeliz, rezando para ser readmitido ao lar (...) [havia sido expulso de Florença].

Lembramos também que essa obra de Dante, talvez por ele estar experimentando à época um momento de profunda amargura, teve como grande modelo o Consolatione Philosophiae de Boécio, sobre o qual bem tratamos na série anterior de posts. Pretendemos, fica claro, seguir banhando os leitores com o espírito da Filosofia Perene conforme expresso nas mais egrégias obras da tradição ocidental.
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LIVRO I
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Cap. 1
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Como diz “O Filósofo” (Aristóteles, segundo seu cognome na Idade Média): “todo homem por natureza deseja conhecer”, assim como toda coisa se inclina à sua perfeição, porque o conhecimento é a mais alta perfeição d’alma.
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O que impede o conhecimento no homem é:

o corpo, por sua imperfeição sensitiva;
a alma, por sua corrupção, malícia, vício;
a necessidade, por suas responsabilidades civis e/ou domésticas,
e a indolência, por prostrar o homem em uma localização desprivilegiada, longe das fontes de conhecimento, etc.

Segundo Dante, o primeiro e o terceiro impedimentos (corpo e necessidade) são perdoáveis enquanto tais.
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Se há uma grande compaixão n’alma do intelectual, ela se expressa, diz o florentino, na generosidade em transmitir o conhecimento aos que forem intelectualmente “desfavorecidos” pelas razões acima elencadas.
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Explicando o título de sua obra, Dante traça uma analogia entre “carne” e poesia, “pão” e seus comentários, porque igualmente vivaz e prazerosamente repartidos entre os amigos à mesa. Aproveita ele para lembrar que, ao modo da anterior La Vita Nuova, o Convivio também se caracteriza pelo prosimetrum, a composição que adota junto aos versos a prosa para que possa bem digeri-los e igualmente apresentar suas perspectivas sobre as coisas.
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Cap. 4
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Tendo, entre outras queixas, lamentado nos cap. 2 e 3 a má fama que adquirira em suas viagens pela Itália, Dante se põe a explicar o porquê da “presença” (física) de um homem sempre diminuir a estima que outrora gozava entre as pessoas. Lista ele três razões possíveis para a redução da estima: imaturidade mental e inveja, ambas causadas pela imperfeição do julgador, e a imperfeição real do próprio julgado.
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Muito lamenta Dante que os homens em geral só entendam as coisas pelo seu exterior:

A maioria dos homens vive de acordo com os sentidos e não de acordo com a razão – como crianças.

A inveja provém da incapacidade de pessoas más em suportar serem iguais a pessoas de superior excelência.

(...) elas vêem partes do corpo e capacidades muito parecidas às delas e temem.

Agostinho dizia que não há ninguém perfeito neste mundo. A “presença” de que fala Dante acaba revelando imperfeições que maculam o “brilhantismo” da pessoa famosa; por esta razão são os profetas menos louvados em suas terras. Assim, Dante defende que o homem restrinja sua privacidade, que dê limite à sua presença pública.
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Sem jamais esquecer, é claro, que a “presença” também pode diminuir os traços de infâmia.
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Dante lamenta que sua grande fama na Itália tenha se tornado ordinária – e, devido a isso, tentará recuperá-la adotando nesta obra, segundo ele, um estilo mais “eminente”.
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Cap. 13
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Arrematando os oito capítulos anteriores onde havia buscado justificar a utilização da língua italiana em detrimento do latim no Convivio, Dante afirma que o homem possui duas perfeições:

Primária – causa sua existência

Secundária – causa sua bondade

Não é impossível, diz Aristóteles no livro II da Física, que uma coisa possua diferentes causas eficientes, contudo uma deve ser a principal (o fogo e o martelo causam a faca, embora seja o ferreiro a sua principal causa).
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Ora, ressalta Dante, pois foi justo o vernáculo italiano que aproximou os seus pais para que o pudessem conceber. Foi o vernacular que colocou Dante no caminho do conhecimento, pelo qual chegou finalmente ao latim e às ciências. Deve o florentino no mínimo honrar esta língua, assim o julga.
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Todas as coisas por natureza buscam sua própria preservação; com o vernacular não é diferente. Dante estabeleceu com o italiano uma amizade e uma harmonia que se encontram claramente expressas na métrica e na rima das canzoni aqui dispostas. Autor e língua, assim, acabam por dividir o mesmo propósito, o mesmo fim. Que bela declaração de amor por uma língua! Quem sabe, uma vez dotados desse espírito, não cometêssemos assim tantos estupros contra nosso injustamente vilipendiado Português!
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Na semana que vem, seguiremos postando mais algumas pérolas do Convivio de Dante. Aguardem.

terça-feira, 8 de dezembro de 2009

Consolação da Filosofia, por Boécio - V

Fortuna e Providência

Nada é criado sem propósito.

Providência = razão divina(conhecimento de tudo antes de acontecer)
A imagem do quadro na mente.

Destino (fortuna) = o trabalho de Deus dia a dia (destinação de formas, lugares, estações, proporções a todas as coisas)
O quadro sendo pintado.

Antes de acontecer, é providência; acontecido, é destino.

Nem tudo está sujeito ao destino, mas o que está sujeito ao destino forçosamente está sujeito à divina Providência.

A Filosofia expõe uma analogia sensacional:

As rodas de uma carroça giram sobre o eixo estático (Deus); o centro da roda (o homem bom e sábio) gira mais firme do que as bordas; os raios da roda são como os homens médios, em uma extremidade firmes e na outra muito rápidos (os maus) (assim, mesmo os piores homens estão conectados com Deus). A roda é o destino (roda da fortuna); o eixo é a Providência.

Todo destino é bom, pois ou recompensa ou pune.

A Filosofia questiona o julgamento dos homens sobre outros homens. Sabemos de suas ações, mas e do que se passa em seus espíritos, sabemos?

Ninguém é melhor avalista da alma do que Deus. Ele pune os maus e honra os bons. Muito acontece de julgarmos um homem como Deus nos julga. Há homens muito maus que não põem seus desejos em ação e vice-versa. Alguns bons homens podem ter seu poder arrancado para não comprometerem sua bondade. O homem sábio não deve amar a felicidade mundana além da conta, pois seguido ela é dada aos piores homens.

A Filosofia salmodia sobre a incrível ordem e harmonia do universo, o amor que tudo tem em seu servir a Deus, e o contentamento com o governo divino; do contrário, nada existiria. Servir ao Criador é existir.

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Sobre o livre-arbítrio

Boécio pergunta se temos livre-arbítrio, face à predestinação.

A Filosofia responde que todo homem possui liberdade, considerando que ele sabe o que quer. A razão traz discernimento, e o discernimento é o livre-arbítrio. Quanto mais próxima de Deus a mente do homem, mais livre; quanto mais presa a este mundo, menos livre.

Boécio fica perplexo com uma nova dúvida: se Deus predestina, como permite que o mal seja escolhido?

A Filosofia lhe rebate com uma outra pergunta: aprazaria a alguém, sendo um rei, ter como servos somente escravos?

Boécio insiste; não entende que propósito existe em rezar sobre o que já é predestinado.

A Filosofia diz que muitos já passaram pela mesma angústia. Cícero é um dos que não puderam resolver a questão por suas mentes estarem muito imersas em desejos mundanos.

Ademais, muito já foi dito aqui sobre a bondade como reguladora do mundo, o mal que não existe em si e por si.

Boécio pergunta: tudo o que Deus conhece deve acontecer irrevogavelmente?

A Filosofia responde: não irrevogavelmente, mas parte deve acontecer – o que é necessário para nós e desejado por ele. Além disso, há as coisas possíveis, que em seu acontecimento ou não-acontecimento não causam danos. Deus sabe tudo, e há coisas que ele pode desejar prevenir.

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O que é a eternidade?

É a pergunta de Boécio.

A Filosofia diz que há três coisas sobre a terra:

1) as que duram um tempo, tendo começo e fim;
2) as que são eternas, com começo mas sem fim (como os anjos e almas humanas) e
3) a que é eterna, sem começo e sem fim, que é Deus.

Para nós, só existe o que está no tempo. Para Deus, tudo é presente.

Por isso, jamais deixe de se curvar diante dEle, pois que é todo-poderoso, todo bem, todo tempo. Busque-o, faça o bem, ame a virtude!

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Finda aqui o resumo dessa grande obra.

Na próxima semana, exporemos alguns excertos da encantadora pérola filosófica de Dante Alighieri, o Convivio (O Banquete).

domingo, 6 de dezembro de 2009

Consolação da Filosofia, por Boécio - IV

A natureza

O Criador deu um nome a todas as criaturas e depois o dividiu em quatro elementos: terra, água, ar e fogo, cada um com seu local e distinção, embora ligados em “laços de paz”.

Pela sua ordem, o mais inferior é a Terra, fria e seca, depois a Água, fria e úmida; o Ar, por sua vez, se distingue por ser ou frio, ou úmido, ou quente, já que foi criado entre a Terra e o Fogo; o Fogo é o mais elevado; acima de todos, embora misturado com todos (grande semelhança com o nous de Anaxágoras). Todos são fundamentais na natureza, estão em tudo.

“Não há menos d’alma no dedo mínimo do que no corpo inteiro”.

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A alma

A alma é tripartite (Platão), dividida em desejo e paixão, comuns entre homens e animais, e razão, virtude especial ao homem, que deve controlar as outras.

“[A alma] quando pensa no seu Criador, está acima de sí própria; quando reflete sobre si mesma está em si própria; e está abaixo de si própria quando ama essas coisas mundanas e as admira”.

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O bem

Toda forma de bem vem de Deus e retorna a Ele. Deus é o bem perfeito, ao qual não falta desejo algum. Nenhum homem recebe o prazer pela coisa em si, mas pelo bem que ele ganha através delas. Todo desejo emana do sumo Bem.

“Não consegues entender que se nada fosse completo, então nada estaria faltando, e que se nada estivesse faltando, nada estaria completo? (...) É assaz evidente que o bem perfeito existiu antes do bem imperfeito”.

A bondade de Deus não pode ser extrínseca, vir de fora, porque, do contrário, a origem da bondade seria melhor do que Ele. Ademais, a perfeição é a unidade, a unidade é a perfeição (qualquer coisa distinta de Deus que não estivesse nele o tornaria imperfeito). Assim, não há nada melhor do que Deus (e por isso o argumento de Anselmo é tão fabuloso).

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A suma felicidade

Em um diálogo bem platônico, a Mente deseja entender melhor o que é a suma felicidade.

Diz a Filosofia: todo o ser criado deseja a eternidade, tenha ele alma ou não, mesmo as plantas (o ciclo de morte das plantas e de suas sementes gerando novas plantas é uma amostra desse “ímpeto de continuidade”. Boécio entende, e cita a geração de proles entre os animais).

Desejando-se a vida eterna, deseja-se a única coisa que vive para sempre: Deus. Não se pode buscar nada acima dele, porque não pode haver.

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Da verdade

Um grão da verdade está sempre presente em nossas almas. Ele deve ser despertado com o questionamento e com o ensinamento, para poder crescer.

Segundo a Filosofia, Platão disse: “quem quer que não se lembre da bondade, deve se virar para sua memória, então lá encontrará a bondade, escondida entre a preguiça do corpo e as distrações e aflições da Mente”

A Filosofia lembra a Boécio que ele era mais confiante nos desígnios de Deus. Boécio admite a sua tolice: “Nenhum homem deseja resistir à vontade de seu criador, exceto os homens tolos ou os anjos rebeldes.”

Nada pode ir contra a vontade do todo-poderoso, embora alguns desejem. A Babilônia, na ambição de querer saber o que havia no Céu, foi atingida por Deus e teve a língua de seu povo dividida.

Não importa a quantidade de parábolas e exemplos, sempre a mente irá em busca daquilo que buscamos, que é Deus. Estes instrumentos não têm uso por si mesmos. Platão já avisava da importância das parábolas serem adaptadas às conjunturas de cada povo ao qual se deseja explicar a natureza das coisas. Na Grécia, a história de Orfeu e Euridice, p. ex., ensina aos homens que fogem da escuridão do inferno e vão em direção à luz da verdadeira bondade a nunca olharem para trás para seus antigos pecados, de modo a nunca retornar a eles.

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O mal no mundo

A infelicidade ainda persiste sobre Boécio, porque ele não consegue compreender a razão de Deus, todo bondade e poder, permitir que o mal exista no mundo. Homens maus têm poder e honrarias, e aos homens sábios e bons só resta o sofrimento.

A Filosofia responde que o Bem sempre tem poder, o Mal não, porque todas as criaturas desejam o bem, e os bons o desejam de forma correta, enquanto os maus buscam-no pelos caminhos errados. (como dois homens correndo em direção ao mesmo destino, só que o mau indo por estradas tortuosas e escuras).

Todo homem que deseja ser virtuoso deseja ser sábio. O bom é feliz, o feliz é abençoado.

Que um homem possa fazer o mal não é um poder, mas uma fraqueza”.

Nenhuma bondade passa sem recompensa, que é dada pela própria bondade. O mal, pelo contrário, só passa por punições.

Ao homem corrompido resta a bestialidade, porque a essência do homem verdadeiro é a unidade de corpo e alma. A um homem ambicioso e usurpador, não chame de homem, mas de lobo; ao furioso e rebelde, chame de cão de caça; ao falso e engenhoso, de raposa, e o que é selvagem e colérico, chame-o de leão.

Boécio segue lamentando, triste pelo mal ser tão mais praticado.

A Filosofia explica que, mesmo que fossem imortais, os maus sempre seriam miseráveis e infelizes.

“Que sua maldade passe impune nesta vida é o sinal mais claro do maior pecado neste mundo, e um penhor da mais terrível penalidade que estará por vir”.

Piores são aqueles que afirmam que os mais sábios nada podem ver do além, como eles. É como se as crianças se criassem todas perfeitas, mas, ao se tornarem adultas, algumas se corrompessem e afirmassem que todas ainda são igualmente perfeitas, ou igualmente corrompidas.

Ecoando Platão, diz ela que os homens punidos são mais felizes do que os que punem, porque os que praticam o mal são mais desgraçados do que os que o sofrem. Por outro lado, punir os maus é melhor do que melhorar a situação das suas vítimas, pois que a doença daqueles é mais profunda.

Deve o justo aplacar a raiva, amando os homens e odiando os seus pecados.

Mas o teimoso Boécio diz ainda não conseguir entender o triunfo do mal no mundo de Deus.

E então a Filosofia responde com um canto que lista diversas dúvidas que a mente dos homens tem em relação aos fenômenos do Universo (os diferentes trajetos das estrelas, o Sol que parece mergulhar no mar, etc.) Mas Deus, quando investigado, assim como o seu mundo natural, revela a Verdade.

Admite a Filosofia que o questionamento de Boécio é espinhoso, um dos grandes temas da Filosofia. Poucos pensadores chegaram a uma conclusão satisfatória.

quinta-feira, 3 de dezembro de 2009

A Consolação da Filosofia, por Boécio - III

Deus

A Filosofia exalta o Criador:

“Um criador existe sem dúvida alguma, e ele é o comandante dos céus e da terra e de todas as criaturas, visíveis e invisíveis. Ele é o Deus todo-poderoso.”

“O Deus todo-poderoso compeliu com o seu poder todas as suas criaturas, de modo que cada uma delas está em conflito com a outra, e ainda assim sustenta a outra, a fim de que elas não se desliguem entre si, mas voltem ao antigo curso para então começar novamente. Tamanha é a sua variação que as criaturas opostas conflitam umas com as outras e ao mesmo tempo preservam juntas a harmonia”.

Assim, um contrário não pode existir sem o outro e só pode ser medido pelo outro.

“Ó, quão feliz seria a humanidade se suas mentes fossem tão retas e firmemente estabelecidas, e tão ordenadas como é o restante da criação!”

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A busca pelo bem

Diz a Filosofia sobre a sua doutrina:

“É muito amarga à boca, e dói à garganta quando da primeira vez que você prova, mas vai ficando doce e chega muito suave ao estômago.”

O amargo antes do doce, a chuva antes do sol, assim é a verdadeira felicidade, as coisas boas da natureza sendo muito mais exaltadas quando precedidas das coisas desagradáveis.

“Todo mortal se aflige com diversas preocupações, e mesmo assim todos desejam chegar por muitos caminhos a um único fim; isto é, eles desejam por diversos meios atingir uma felicidade. Ora, esta não é outra além de Deus, o princípio e o fim de todo bem; Ele é a suma felicidade.”

Nada pode haver fora da felicidade suprema, que abarca todas as felicidades. Toda água sai do mar e a ele retorna.

A verdadeira felicidade não é um bem mundano, mas uma bênção divina, pois não é o destino que a produz, e sim Deus.

A Filosofia cita Epicuro, que classificava o prazer como o mais alto bem, porque, segundo ele, todas as formas de felicidade bajulam e encorajam a mente. Contudo, diz ela, o prazer por si mesmo bajula o corpo quase que de forma exclusiva.

Todos os homens desejam o bem, de uma forma ou de outra. Jamais cessam em seu querer, sempre buscam satisfazer todas as necessidades de modo a não mais possui-las, “mas só Deus não possui necessidades”. Deus não necessita nada, a não ser ele mesmo (como já afirmava Aristóteles).

O desejo em si não é mau. O que ocorre no homem é um erro no caminho até o desejo, que nunca é o mais reto, o mais verdadeiro.

Mas o ser humano pode se aperfeiçoar. Todos os seres se restringem às qualidades nas quais foram criados, exceto os homens e alguns anjos. Por mais que domestiquemos um leão, experimente dar-lhe sangue...

“Ó, vós, homens deste mundo, embora ajais como gado por vossa estupidez, mesmo assim podeis de alguma forma perceber, como num sonho, algo da sua origem, que é Deus”.

Embora não compreendamos as coisas totalmente, percebemos em toda busca pela felicidade um verdadeiro princípio e um verdadeiro fim.

“Tu és guiado por tua natureza em direção ao entendimento, mas é afastado dele por múltiplos erros”.

Boécio enfim admite: “Sei que falas a verdade. Eu era de fato miserável”.

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A cobiça é inextingüível

Quanto mais o homem possui, mais ele se curva ao desejo de possuir. A cobiça jamais extingüe a si mesma – ela só cresce, só se acumula, “pois o homem não pode tomar consigo desta terra nada mais do que a ela trouxe”.

O poder mundano nunca planta virtudes, e só colhe vícios. O poder alheio também eleva o vício pela inveja e pelo desprezo. Boécio não teria sido preso se emulasse o vício e a corrupção daqueles que concordaram com os terríveis atos e planos de Teodorico.

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As quatro virtudes

A Sabedoria, a mais sublime das virtudes, possui em si quatro outras virtudes: prudência, temperança, coragem e justiça, tornando os seus amantes sábios e valorosos, sóbrios, pacientes e justos.

A autoridade material não pode, pelo contrário, conceder virtude a ninguém.

A sabedoria vem de dentro; a autoridade, o poder, a fama, vêm de fora – não podem nunca pertencer a alguém, ao seu ser.

A Filosofia lembra Boécio das tantas histórias de reis que terminaram sem nada, e arremata, irônica:

“Certamente a riqueza é algo ótimo, a ponto de não poder preservar nem a si mesma nem ao seu senhor.”

Um rei pode dominar um povo inteiro, mas jamais os seus desejos. Um rei jamais vive em paz, o temor sempre o espreita. Um rei não é nada sem os seus servos.

Sobre a amizade baseada na riqueza: “O que é pior praga e maior dor a qualquer homem do que ter em sua companhia e proximidade um inimigo com a aparência de um amigo?”

“Quem tanto deseja ter poder deve antes lutar para ter poder sobre sua própria mente”.

“Ó, glória deste mundo! Ai de mim, por que os tolos com falsa voz te conclamam glória, quando tal não és?”

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A tolice do “bom berço”

Um homem é digno de louvor por si mesmo, não por seus pais, “pois todo mundo sabe que todos os homens vêm de um pai e uma mãe”.

“És tu mais justo pela justeza de outro?”

“A bondade e a nobre herança de um homem provém da mente e não da carne”.

O pai de todos os homens é Deus.

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Os prazeres criam dores

O desejo mau da luxúria disturba a mente de qualquer bom homem.

“Assim como a abelha deve morrer quando, em sua fúria, aferroa, deve também toda alma perecer depois da luxúria, a não ser que o homem retorne à virtude.”

A entrega à carne torna-a seu senhor e não seu servo, e é por isso o cúmulo do rebaixamento de um homem.

“Nem se tivesses o corpo maior do que o do elefante, ou se fosses mais forte do que o leão ou o touro, ou mais veloz do que o tigre, e o mais belo dos homens, ora, se procurasses a Sabedoria logo perceberias como todas estas qualidades não se comparam a uma única qualidade da alma.”

Assimo como a harmonia do Universo não pode ser comparada ao próprio Criador, a beleza corporal é tão frágil e fugaz como as flores.

Todo homem sabe onde procurar comida, onde procurar riquezas, mas é lamentável que não saiba onde procurar a verdadeira felicidade.

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A ignorância divide Deus

Boécio admite que a ignorância dos homens leva-os a dividir algo que é uno: Deus.

Segundo a Filosofia, o poder, a abundância, a glória, a dignidade e a bênção, só estão todas unidas em Deus. O homem comum idealiza, assim, somente uma parte de Deus, não compreende sua unidade. Portanto, nunca estará contente, porque “a riqueza suplica por poder, o poder suplica por honra, a honra suplica por glória”.

Que esperança de ser verdadeiramente feliz podemos ter então, pergunta Boécio.

Responde a Filosofia:

“Se qualquer homem desejar ter todas as felicidades em uma, desejará ter a mais elevada felicidade; mas ele não pode obtê-las em perfeição neste mundo.” (até mesmo porque sua vida aqui termina, é finita).

Portanto, nenhum homem deve esperar atingir a suma felicidade em sua vida presente. Por melhores que sejam, nenhuma dessas diferentes felicidades passa de uma mera impressão do Bem eterno.

domingo, 22 de novembro de 2009

A Consolação da Filosofia, por Boécio - II

A felicidade

A fortuna (destino) muda, e os homens também devem mudar com ela. Boécio deve a sua desgraça ao seu desejo pela felicidade mundana.

Nenhum homem, por mais feliz e materialmente realizado que seja, pode resistir à fortuna e ao sofrimento, pois quem tem de tudo teme por seu futuro, ou teme perder sua fonte de alegria. Uma coisa minúscula pode fazer o mais feliz dos homens vacilar em sua felicidade a ponto de pensar tê-la perdido totalmente. Por que então procuram a felicidade do lado de fora, quando ela lhes foi incutida por dentro, pelo poder divino?

O pináculo de toda a felicidade é a bondade.

A sabedoria, ao contrário da felicidade, jamais pode ser perdida. Por isso a fortuna não pode dar ao homem felicidade, pois tanto fortuna quanto felicidade são inconstantes.

“Além disso, o homem que possui estes bens mundanos, ou sabe que eles irão lhe deixar ou não sabe. Se não sabe, que felicidade pode haver na cegueira da ignorância? Se ele sabe, então vive no medo de perder aquilo que ele não pode duvidar de que pode perder; de modo que um pavor constante o impede de ser feliz”.

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O poder e a riqueza

Deus quer que o homem governe todas as outras criaturas, mas o homem se torna ele próprio seu escravo. Os ricos trazem para si inimigos, e o poder, que geralmente advém a homens muito maus, não é em sua natureza bom.

Quanto à fama, mesmo que ela seja mundial, possuirá um alcance estreitíssimo, a terra sendo um mero grão de areia no universo. Quando o destino vira as suas costas para um homem, presta-lhe um verdadeiro serviço, ao permitir que encontre o caminho para a bondade.

“Nenhuma casa pode suportar por muito tempo os fortes ventos no topo de uma alta montanha; nem resistirá às grandes chuva se construída sobre areia fina. (...) Quem quer que busque a felicidade eterna deve fugir do perigoso esplendor desta terra média, e construir a casa de sua mente sobre a rocha firme da humildade”.

“És tu quem dá valor à tua riqueza, ou ela é valiosa por sua própria natureza?

A riqueza cobiçada torna o homem odioso tanto para Deus quanto para os homens.

A virtude torna o homem amada por Deus e por aqueles (poucos) que a valorizam.

Tudo o que é dado é mais precioso do que é guardado e acumulado.

“Por mais rico que sejas, jamais tua riqueza será suficiente, e jamais a tua doação irá satisfazer totalmente a pobreza dos outros, bem como sua cobiça.”

Como pode o homem admirar mais a pedra preciosa do que a outro homem?

“Humilhamo-nos demais quando amamos mais o que é sujeito a nós do que amamos a nós mesmos, ou do que amamos o Senhor, que nos criou e nos deu todas as coisas boas”.

O que é realmente necessário? Comida, bebida, vestuário e implementos que ajudem à pessoa a exercitar alguns poderes naturais.

“Por que lamentas por uma beleza que não é tua? Tu te aprazarias naquilo que não te diz respeito, e naquilo que nem criaste nem possuis?”

Buscar as bênçãos e a glória de uma natureza mais elevada nas coisas inferiores, que perecem, é uma ofensa ao Criador, que deseja que todos os homens sejam senhores de todas as outras criaturas. O ser humano que não alça o seu desejo à altura do conhecimento que lhe foi dado é inferior às bestas (como já dizia Aristóteles).

“A natureza das bestas é não terem conhecimento de si mesmas, mas no homem é uma deformidade não possuir o auto-conhecimento”.

A Filosofia canta novamente, sobre quão afortunado era o homem antes dos prazeres materiais, quando seguia o caminho estrito da natureza. Lamenta: quem foi o primeiro infeliz a descobrir as pedras preciosas sobre a terra? Riqueza e poder transformaram-se em honras.

"(...) um homem nunca conquista a virtude e a excelência por sua autoridade, mas em razão de sua virtude e excelência é que ele atinge autoridade e poder.”
Se o poder fosse bom por sua própria natureza, jamais estimularia o mal. Pelo contrário, o poder dado a um homem mau não o melhora, mas o revela em sua maldade e corrupção.

Nero mandou queimar Roma para comparar o brilho das chamas com os relatos da destruição de Tróia; condenou à morte todos os grandes sábios da cidade, e matou até mesmo a própria mãe. Ainda assim, seu poder diminuiu, e tanto mais ele se regojizava.

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As necessidades de um rei

A Mente argumenta que nunca deleitou-se com a cobiça e com o poder terreno, mas que desejou instrumentos e matéria para pôr em prática o seu trabalho, sua responsabilidade e autoridade. Um rei sem terra povoada, sem homens de guerra, sem homens de fé e sem homens trabalhadores não pode excerticar seus “poderes naturais”, seu talento especial (trecho provavelmente construído por Alfred).

A Filosofia diz que muitos desejam o poder, mas poucos são dignos dele; aquele que é sábio e busca com vigor o bem sabe o quão frágil e carente de bondade é tal poder.

Ademais, quão limitado esse dito poder! Que tolo esforço de um homem em empregar duramente os seus dias para embelezar uma fama restrita a tão pequeno lote, “uma vez que a parte do mundo no qual reside o homem é só um ponto comparada ao resto”. É impossível o nome de um homem chegar a todos da mesma forma. Mesmo que se deseje toda a fama, é muito difícil que vários homens gostem do mesmo objeto, que dirá da mesma pessoa.

Outro erro é a idéia de honra eterna, pois há honras que escapam ao registro, ou mesmo à ação natural do tempo e do esquecimento. De qualquer forma, mesmo dez mil anos não seriam nada comparados à eternidade, e quem busca o bem busca a eternidade (não pode haver comparação alguma entre finito e infinito).

“Isto [a fama de curto prazo, a mais comum] tu buscas conquistar negligenciando os poderes de tua razão, de teu entendimento, e de teu juízo; desejando ter como recompensa de tuas boas ações o bom relato de homens que nem conheces, uma recompensa que deverias buscar unicamente de Deus”.

Ademais, a alma é imortal, o corpo perece.

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A morte

Embora a mente deseje toda a glória terrena, a morte não está nem aí.

“Ela não dá atenção ao bom berço, mas engole tanto os poderosos quanto os inferiores, e assim coloca o grande e o pequeno no mesmo nível.”

Além disso, mesmo a fama falha com muita gente após a sua morte.

“Não penses que sou teimosa em minha luta contra a fortuna, eu mesma não a temo, pois freqüentemente acontece do destino não poder ajudar nem prejudicar um homem. Ela não merece nenhum louvor, pois por si mesma declara o seu vazio.”

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A adversidade é superior à prosperidade (felicidade mundana).

A felicidade verdadeira, constante e cumpridora de suas promessas é superior à falsa felicidade, que trai suas amizades e que prima pela inconstância. A felicidade verdadeira é libertadora de ilusões, a falsa é ilusória. A felicidade na adversidade é sóbria, é clara; a felicidade na prosperidade é precipitada, é ignorante e turva.

O que você daria para distingüir claramente amigos de inimigos?

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A Felicidade

Boécio admite estar muito confortado pelas palavras da Filosofia, mas gostaria de ouvir mais. No que consiste a verdadeira felicidade?

A Filosofia discute a natureza do bem supremo e mostra como todos os homens, mesmo os piores, desejam atingi-lo. Este bem não reside no poder, nem na riqueza, nem na fama, nem no bom berço, nem no prazer carnal; reside em Deus. Os homens podem participar na felicidade e assim atingir a divindade.

O Mal não tem existência, pois Deus, que pode fazer todas as coisas, não pode fazer o mal (o próprio ato de criação do mundo é uma bondade; maldade seria o nada).

quinta-feira, 19 de novembro de 2009

A Consolação da Filosofia, por Boécio

Boethius

Boécio (480-524 AD) foi uma importantíssimo filósofo neoplatônico. Considerado por muitos como a “ponte” entre a filosofia antiga e a medieval, ajudou a construir o pensamento que dominaria a Europa pré-escolástica (séc. V ao séc. XI). Segundo o grande historiador Edward Gibbon, Boécio foi “o último dos romanos que Catão ou Túlio poderia ter tomado como seu compatriota”.

Nobre de sangue eminente, serviu como cônsul e senador no reino ostrogodo do ariano Teodorico, que lhe tinha em grande estima. Entretanto, ao combater os maus elementos da política romana, acaba ganhando um punhado de inimigos, que começam a tramar a sua queda. O rei passa a mostrar sinais de intolerância; envia o Papa João I a Justino em uma humilhante missão a Constantinopla, depois o prende para morrer de fome e inanição. A partir de então Teodorico escutaria as acusações contra Boécio, segundo as quais este estaria por trás de uma conspiração contra o seu poder imperial. Nem a famosa eloqüência de Boécio o salvaria agora. O Senado o confina em uma masmorra em Ticinum (moderna Pávia) e confisca suas propriedades.

Após muitos meses de cárcere, durante os quais comporia a sua famosa obra, seria torturado e morto.

Contemporâneos de Boécio, como Prisciano, Cassiodoro e Enódio tinham-no como o homem mais intelectual de sua época. Profundamente versado nas obras dos fílósofos gregos, chegou a traduzir algumas para o latim. Por séculos, os medievais só puderam conhecer Aristóteles quase que exclusivamente por intermédio das traduções e comentários de Boécio. Possuía também grande talento para matemática, ciência, engenharia prática, e seu trabalho sobre música ecoaria no ocidente por séculos.

Após sua morte, foi tomado como mártir da fé ortodoxa, sendo canonizado por São Severino. Muitos trabalhos de teologia doutrinal lhe foram atribuídos, mas há uma discussão moderna em torno disso (há quem duvide até do seu cristianismo).

A obra

http://etext.virginia.edu/latin/boethius/boephil.html

A Consolatione Philosophiae era o vade mecum filosófico da Idade Média. Sua influência e popularidade só poderia ser comparada à De Officis de Cícero e, posteriormente, à Imitação de Cristo de Kempis. Foi um dos primeiros livros impressos na Europa após a revolucionária invenção de Gutemberg.

Quando as rudes línguas européias começaram a ser articuladas em prosa, surgiram versões do livro de Boécio no vernacular. Destas primeiras traduções, a do rei Alfred o Grande foi a primeira, seguida um século depois por uma versão literal no dialeto alemânico do old high german, no famoso monastério de São Gall, pelo monge Notker. Houve versões também em provençal antigo, em quatro edições francesas nos séc. XIII e XIV. Na Inglaterra, Geoffrey Chaucer fez uma tradução em prosa, sendo seguido por muitos outros, até mesmo a rainha Elizabeth I, em cuja época já havia versões em italiano, espanhol e grego. Thomas More mantinha uma cópia consigo quando na prisão, chegando até mesmo a compor uma versão própria, identificando-se com a angústia pela qual passara Boécio.

Sua influência na literatura européia é imensa. Há traços da obra em Beowulf, nos poemas de Chaucer, em Gower, em Lydgate, em Spenser, em Dante e Boccaccio.

Boécio, confinado em sua masmorra, conseguiu expressar de forma belíssima o confronto entre a sua ardente aflição face à iminente morte e a profunda sabedoria que sua alma ainda mantinha. Compondo um memorável diálogo entre a Dama Filosofia e o conflituosa Mente, demonstra como a primeira, iluminada pela verdade divina, é capaz de aplacar toda a dor existencial que sobrevenha à segunda.

É, sem dúvidas, uma obra para todos os tempos.

Sobre a tradução de Alfred, o Grande

A versão estudada aqui é a de Alfred, o Grande (849-899), rei dos anglo-saxões e um dos maiores responsáveis por tornar o livro popular na alta Idade Média. Além de grande líder militar e político, tendo impedido a invasão viking e unificado os reinos saxões, também empreendeu traduções de importantes obras, como Pastoral Care, Orosius e, claro, The Consolation of Philosophy of Boethius.

A religião e o aprendizado eram fundamentais para Alfred, uma espécie de “Carlos Magno da Bretanha”, amante dos livros e admirador dos intelectuais. Diante da ignorância na qual tinha mergulhado o seu povo após os terríveis confrontos com os vikings, sabia que a educação era fundamental para que a região voltasse a prosperar. Em um trecho da Consolação, Alfred lamenta muito a decadência intelectual e cultural na qual havia caído sua amada terra.

Segundo o monge Asser, biógrafo de Alfred e homem de confiança em seu projeto cultural, uma das primeiras atitudes do governante foi fundar uma court school, ao modelo das escolas palatinas de Carlos Magno. Ambos tiveram lá suas dificuldades para aprovar a idéia entre os nobres de rude espírito guerreiro. Seguindo os passes do grande imperador franco, Alfred também buscou reunir eruditos de outras partes da Europa, tamanha a decadência dos clérigos sábios em seu reino.

Apesar de uma tarefa claramente prazerosa para ele, a tradução da Consolação não deve ter sido nada fácil. O conhecimento de latim era muito limitado, e o próprio latim já havia sofrido suas mudanças até então (Asser tinha que ler em voz bem alta e explicar diversas questões).

Alfred não estava focado na cópia, mas na transposição do entendimento da obra para o seu povo, e nisto teve sucesso, pois seu inglês, segundo os filólogos, embora desprovido de arte e muitas vezes deselegante e falho, é suficientemente claro quanto ao sentido. Além disso, que referências de prosa em inglês tinha Alfred à época? Afora a tradução inglesa da Bíblia, todo o esforço literário que lhe precedera estava em verso (o qual floresceu muito ao norte da ilha). Bem sabia Alfred destas limitações, tanto que fez adaptações que achou necessárias, até mesmo omitindo e adicionando trechos (e aqui se revela a parte mais interessante da versão de Alfred). Por isso, muitos consideram o grande rei da Saxônia Ocidental como o primeiro autor de prosa literária da história inglesa.

O abade Ælfric, cerca de um século depois, reconhece o seu débito para com o rei Alfred; através de suas traduções, pôde ele próprio construir uma prosa inglesa mais suave e clara, mais elegante e mais repleta de nuances.

Voltando à versão de Alfred, é nitido o tom cristão impingido à obra, citando diversas vezes Deus, Cristo, anjos, demônios, etc, simpatizando com o lado católico de Boécio (que não é particularmente mostrado nessa obra) e desaprovando o arianismo de Teodorico. Com freqüência, Alfred até se esquece de sua tarefa de tradutor, revelando ainda mais o seu espírito e a energia com a qual abraçara a obra.

“Sempre foi meu desejo viver honradamente enquanto vivo, e, depois da minha morte, deixar para aqueles que devem vir depois de mim a minha memória em boas obras”

— Alfred

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A versão de Alfred está dividida em 4 livros e 42 capítulos, alternando cada trecho de prosa com um trecho poético. Decidimos, para facilitar a síntese, dividi-la em tópicos abordados.

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Introdução

O rei Teodorico era cristão mas com forte inclinação ao Arianismo. Prometeu aos romanos a amizade e o respeito, mas no fim incorreu em absurdos, como a morte do próprio Papa João. Alfred conta-nos a respeito da eminência de Boécio e de como este se abatia com a desonra que Teodorico representava à história dos césares. Boécio secretamente clamara por ajuda do imperador de Constantinopla, esta fora a razão de seu cárcere.

Enquanto Boécio lamenta a sua sina e o sumiço de sua alegria (“como pode ser feliz o que não reside em felicidade?”), aparece-lhe a Divina Filosofia, o espírito da Sabedoria, que o ergue e o incita a observá-la.

“Não és tu o homem que foi nutrido e ensinado em minha escola? Mas desde quando tu te afliges tanto com estas preocupações mundanas?”

A Filosofia clama contra o mundo sensual, e a Mente (Boécio) diz ter reencontrado sua “mãe de criação”, a Sabedoria, que lamenta:

“Ai de mim, quão profundo o abismo no qual a mente labora quando agitada pelas durezas da vida! Se ela esquece da própria luz, que é uma alegria eterna, e corre para a escuridão externa que são as preocupações mundanas, como agora faz esta Mente, nada mais ela conhece, exceto o sofrimento.”

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Boécio clama pela salvação

Boécio lamuria-se pela fortuna dos maus e a desgraça dos que buscaram a sabedoria. Depois, canta a Deus uma belíssima prece poética, louvando o poder divino e sua ordem, a qual só os homens ousam desobedecer.

“Ó, meu Senhor, tu que olhas por todas as criaturas, em tua amorosa bondade olhe agora por esta terra miserável, e também por toda a humanidade, pois ela agora se debate como as ondas deste mundo.”

A Filosofia logo põe Boécio de frente para a verdade:

“Ninguém te levou ao erro; foste tu mesmo, por tua própria desatenção”.

Segundo ela, não se poderia esperar isso de “um dos cidadãos da Jerusálem celestial”, e reitera que “nenhum homem é jamais banido, a não ser que ele mesmo tenha assim escolhido”.

A pobre Mente diz ter noção de que “tudo vem de Deus”, ao que a primeira responde: “Como podes então, sabendo o início, não saberes também o fim?”

A Filosofia pergunta à Mente se ela conhece a si mesma. “Sei que pertenço aos homens vivos e inteligentes, embora fadados a morrer”, e nada mais sabe a Mente de si – esta é a causa de sua melancolia. Segundo a Filosofia, não crer que a fortuna seja algo independente de Deus já é um bom começo para a cura, pela qual ela se responsabiliza.

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O erro de Boécio

A Filosofia diz a Boécio que o que ele antes tomava por felicidade não era bem felicidade. Os prazeres do mundo enganam os homens.

“Pensas tu que seja algo inédito ou raro o que veio a te acometer, como se jamais houvesse molestado outro homem?(...) Se pensas que é culpa tua que tua prosperidade mundana tenha se ido, então te equivocas, pois seus caminhos também se equivocam. Em ti ela só cumpriu com sua própria natureza, e por sua mudança fez-se conhecer a instabilidade que lhe é natural. (...) Aquela mesma prosperidade, a perda sobre a qual sofres, teria te deixado em paz tivesses tu a recusado; e agora ela te abandonou por sua própria vontade e não pela tua, de tal modo que nenhum homem a perde sem sofrimento.”

Como pode um homem se prender à riqueza quando já encontrou a sabedoria?

Como Boécio ousou imaginar que não seria afetado pelas mudanças do mundo, que sua vida e suas posses permaneceriam intocáveis?

“Como poderias tu estar no meio deste estado de mudanças, sem sentires também algum mal através da adversidade? O que mais os poetas cantariam sobre este mundo [que não isso]?

“Por que me culpas, ó, Mente? Por que estás irritada conosco? No que te ofendi? De fato tu estavas desejosa de mim, não eu de ti! Tu me colocaste na lugar do teu Criador quando nos procuraste para aquele bem pelo qual Ele é que tu deverias ter procurado. Tu dizes que eu te traí; mas, pelo contrário, posso dizer que tu é que me traíste, já que pelo teu desejo e ambição o Criador de todas as criaturas irá me abominar. Tu és, portanto, mais culpado do que eu, tanto por conta do teu próprio desejo ímpio, e também porque, através de ti, não posso realizar a vontade do meu Criador. Pois Ele me concedeu a ti para ser aproveitado de acordo com Seus mandamentos, não para realizar a vontade da tua injusta ganância.”

A mente confessa sua culpa, coberta de remorso.

“Eu não quero que tu te desesperes, mas que te envergonhes do teu erro”, ressalva a Filosofia, “pois aquele que se desespera não tem esperança, enquanto o que se envergonha está no caminho do arrependimento”

“E o que são as riquezas mundanas senão um aviso da morte? Porque a morte vem com nenhum outro propósito que não seja tirar a vida.”

A Filosofia canta sobre a inconstância das coisas naturais.

Boécio reconhece que o que tinha em sua vida comum não era a verdadeira felicidade.

A Filosofia ressalta o enorme valor que Boécio tem para sua esposa, que tudo mais ela esqueceu enquanto sofre pelo seu destino. Além disso, Boécio está vivo e com saúde; nenhuma aflição insuportável ainda lhe desceu sobre os ombros para se entregar dessa forma.

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No próximo post, continuaremos expondo o resumo dessa divina obra.

domingo, 25 de outubro de 2009

A Vida Intelectual, por Sertillanges - V

CAP. 8 – TRABALHO CRIATIVO

I – Escrever

Agora é a hora de produzir resultados. Como diz Sertillanges, não se pode estar sempre aprendendo e pretendendo estar pronto; uma hora os frutos precisam aparecer. Ademais, a aprendizagem e a preparação são processos indissociáveis da produção. Você deve escrever por tuda a sua vida intelectual.

Segundo o autor, nós escrevemos para:

* Ver claramente o que se pensa;

* dar definição aos próprios pensamentos;

* estimular a atenção e manter-se alerta;

* começar uma linha investigativa e solidificá-la;

* encorajar-se, vislumbrando resultados;

* formar um estilo próprio e adquirir a arte de escritor.


Quando escrever o suficiente para divulgar, julgue o seu trabalho e então o publique. Alcemos vôo o mais breve possível, recomenda Sertillanges. O contato com o público o incentivará a melhorar, o elogio merecido o estimulará, e a crítica irá testar o seu trabalho e o seu vigor espiritual. Progredir, evoluir, sem parar.

Père Gratry insiste que devemos sempre meditar com a caneta na mão e sugere pessoalmente que dediquemos a hora tranqüila da manhã a este contato da mente consigo mesma. “Um bom começo é a metade”, já dizia Aristóteles.

Quem não produz, habitua-se à passividade; o medo de orgulho – porque o orgulho também gera o medo – ou a timidez aumentam mais e mais; recuamos, cansamo-nos de esperar, tornamo-nos improdutivos.

Diz ainda Sertillanges: “o silêncio é uma diminuição da personalidade”, pois “o estilo é o homem”, se forma com ele. Acima de tudo, escreva de forma verdadeira, sincera, honesta e justa consigo mesmo. Una a verdade à sua individualidade e à simplicidade, analogamente ao que ocorre no Ser. Como falava Pascal, “a eloqüência verdadeiramente espontânea e inspirada zomba da eloqüência baseada em regras de retórica”.

Conforme Sertillanges, o segredo de escrever é estudar as coisas fervorosamente até que elas falem com você e determinem a sua própria expressão. O clichê é um ornamento, uma frivolidade, uma verdade que se perdeu no ar. Paul Valéry dizia que o uso automático das palavras é o que “mata” a língua; ficamos vivos quando usamos a sintaxe com a completa consciência do que estamos fazendo.

Nosso estilo é nossa “feição”, a nossa identidade.

O estilo, que convém a um pensamento, é como o corpo que pertence à alma, como a planta que provém da semente: tem arquitetura peculiar. Imitar é alienar o pensamento; escrever sem caráter é declará-lo vago ou pueril.

Mas ressalta ainda Sertillanges: devemos ser originais sem buscar a originalidade. O embelezamento, a artificialidade, é uma ofensa à verdade, porque “não há embelezamentos no real, e sim necessidades orgânicas”. Não que na natureza não haja brilho, mas é que o brilho por si só é orgânico. O verdadeiro estilo na mão de um artista competente imita as criações da natureza. Observemos a natureza, então, esta criação supinamente maravilhosa de Deus!

Sejamos econômicos, objetivos, retos. A substância é superior à forma. Como dizia o grande Michelagelo, “o belo é a remoção de todo o supérfluo”.

Não seja escravos da moda. Dá água de nascente, não drogas de farmácia. Muitos escritores, hoje, criam seus sistemas: ora, um sistema é algo do artificial e o artificial ofende a beleza.

Acima de tudo, busque ser compreendido por todos. Só duas mentes parecem no mundo tender à simplicidade: a mente limitada e a mente do gênio.

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II – Desapegar-se de si e do mundo

Todo trabalho criativo requer o desapego. Nossa personalidade deve ser posta de lado, e o mundo esquecido – aspiremos às alturas.

Já vimos que o homem é por inteiro e em si necessário, mas o homem que busca a verdade não deve ser uma criatura da paixão, da vaidade, da ambição. Em geral todos tendemos à vaidade, de fato, mas nossas obras não devem se alimentar dela. A inspiração é incompatível com o desejo egoísta. Querer algo para si é pôr a verdade de lado. Devemos servir à verdade, e não usá-la.

Você está pronto para morrer pela verdade? Tudo o que um verdadeiro amante da verdade escreve, tudo o que ele pensa, deve ser como o sinal que São Pedro mártir traçou com o sangue de sua ferida enquanto morria: credo.

Reconhecermos, acima de tudo, que não somos capazes da ciência universal. Esta é, afinal, a mensagem central da obra de Sertillanges: louvemos a humildade e a sinceridade intelectual, não nos enganemos a nós mesmos; a verdade é uma só.

Não devemos jamais temer a reação do público, as opiniões contrárias. Não deve o intelectual sincero buscar ser “amigo de todos” – mais uma vez: seu compromisso é com a verdade.

Ora, o pensamento não será a sua obra, se o cuidado de agradar e de se adaptar escravizar a sua pena. O público então irá pensar por você, quando você é que deveria pensar por ele.

Tenha o espírito sincero e inocente de uma criança, guardando a experiência e o conhecimento de um adulto devotado à verdade.

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III – Constância, paciência e perseverança

Não ouse imaginar que a vida estudiosa seja uma vida fácil. Ser um intelectual o tempo inteiro exige dedicação plena, profunda, constante. Devemos respirar essa vida. Em nosso cotidiano, costumamos nos perder em frivolidades, em desculpas para a preguiça, para a inação, para a não-entrega. Encontramos uma palavra no dicionário, e então nos referimos a outra, e a mais outra, e a curiosidade nos leva a ir a outro verbete, e outro, e assim nos desligamos da nossa anterior concentração (o quão comum é esse tipo de atitude hoje em dia, com a ajuda da internet, não? Entramos em um site, e então clicamos em sucessivos links, e vamos abrindo diversas janelas simultâneas por pura preguiça mascarada de pretensa curiosidade).

Evitemos nos perder em efemeridades, quaisquer delas, recomenda Sertillanges. Superemos a depressão do vazio que tantas vezes nos acomete. Corremos perigo o tempo todo de acomodarmos a mente – ora, o mundo é uma oferta a isso.

Mas ressalta; “dar um tempo” no trabalho e pensar em outros assuntos importantes não é um ato preguiçoso. Lembremos que a inspiração pode vir nos momentos mais fortuitos e inesperados.

De todo modo, rejeite vigorosamente qualquer interrupção. Não é necessário lançar mão de estimulantes; uma boa caminhada, um alongamento, um exercício de respiração, podem nos manter ativos.

Tenha coragem. Pense no seu trabalho como um plano para conquistar a sua liberdade. O estudo é como uma caminhada transcendental – não se entregue no primeiro sinal de fadiga. Mergulhe na atmosfera, viva isso, respire isso. Tenha Platão como seu amigo e confidente, Aristóteles como o vizinho de porta.

Não dê força às circunstâncias. Asseverava Michelangelo: “as obras realizadas à custa de um grande esforço devem dar a impressão de terem sido fáceis de conceber e executar”.

Ora, o trabalho intelectual também requer heroísmo, como nas batalhas. Tenha paciência, cadência, evite a pressa e a prematuridade. Tudo vem no momento certo.

No reino da mente, a quietude é melhor do que a rapidez.

(...) Uma vida bem preenchida é longa.

(...) Trabalhe com um espírito de eternidade.

Ao cristão, diz Sertillanges para respeitar a Providência divina. A excitação febril leva à escravidão espiritual. Ser intelectual é perseverar, absolutamente. Não se entregue ao humor da hora, a modas, a circunstâncias.

Que importa o tempo quando se está com Deus?

(...) O homem de caráter que trabalhou insistentemente por toda uma longa vida pode deixar-se cair como o sol, em uma morte tranqüila e esplêndida.

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IV – Fazer tudo bem feito e até o fim

Além de exercer as virtudes que lhe são próprias, deve o verdadeiro intelectual pensar na perfeição e na completude do seu trabalho.

Não completar uma obra é destruí-la.

Quando decidir começar algo, não desista. Lembre-se que o ser – verdade, infinitude e bem – é perfeito. Como diz Sertillanges, “ter vocação é estar obrigado à perfeição”.

Ponha seu esboço de lado, descanse os olhos e então observe-o de a uma certa distância. Se não aprová-lo, comece de novo. Do contrário, faça uma crítica minuciosa e melhore o máximo que conseguir, até poder dizer a si mesmo que se esgotou a sua capacidade sobre esta obra. Não se importe com o tamanho dela.

Busque infundir a qualidade em seu trabalho de forma imediata; nunca deixe para aperfeiçoar depois, pois isso é um sussurro da preguiça ao pé do ouvido. Uma obra deve ser como uma pincelada, como um fluxo único, portanto, coloque o seu melhor no momento da criação.

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V – Não ir além das próprias forças

Altiora te ne quaesieris (não procures o que está acima de ti)
— Tomás de Aquino

Não force o seu destino. A vocação lança mão de nossos recursos – não os cria. Busque conhecer onde se encontra a sua vocação, de que sacrifício você é capaz, o que é que você pode escrever, a que público que você pode servir, e só então se entregue com paixão.

Toda obra é grande quando o é na medida certa.

Esta é a grande e milenar sabedoria, conhecer a si mesmo.

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Cap. 9 – O TRABALHADOR E O HOMEM

I – Manter o contato com a vida

Depois de tudo isso, comenta Sertillanges, parece até ironia dizer: liberte a sua alma, mantenha-se livre, mas é isso que se deve fazer.

O que mais importa na vida não é o conhecimento, mas o caráter.

O que conhecemos é só o começo; o homem é a obra terminada. Não somos nem só cabeça nem só membros, somos o coração, centro de equilíbrio de nossa concretude. Assim como o filósofo deve ser um tanto de poeta, o artesão deve ser um tanto de filósofo, e por aí vai.

Mantenhamos a mente aberta, não estreitemos os nossos objetivos finais. Não devemos ser escravos do trabalho nem de peculiaridades. Sertillanges nos diz para conciliarmos nossas vidas intelectuais com outros interesses que contribuam com a sua formação, com seu poder criativo.

Sabemos como uma bela música pode nos inspirar; ela desperta a alma com a sua harmonia e emula a ordem do mundo. Ora, o nosso pensamento não é uma música isolada, mas uma voz em uma orquestra. Tenhamos cuidado em não virarmos nossas costas para o resto da vida quando decidirmos pela vocação do estudo.

Recuse-se a ser um cérebro fora do seu corpo.

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II – Saber como relaxar

Os limites no trabalho reforçam o seu vigor, ao invés de o embaraçarem.

A intemperança é um pecado porque ela nos destrói; e nós temos a obrigação de usar a vida com sabedoria porque temos a obrigação de viver.

Amar a verdade, não o prazer decorrente dela, este é um grande e fundamental princípio. Não se ama o amor em si, mas o seu objeto, e isto Platão já nos ensinava.

Relaxar é essencial como a higiene. Devemos mergulhar de volta na natureza para tomarmos fôlego. Bacon é quem dizia que “gastar muito tempo em estudos é ser preguiçoso”. Descanse, organize-se e prepare-se para as horas de mais intenso trabalho. Melhor trabalhar energicamente e então descansar bem, do que ir diluindo o seu trabalho, emperrando-o com diferentes sintomas.

Seja divertido, não deixe de ser uma boa companhia para os outros. Ninguém aguenta um homem melancólio, já diziam Aristóteles e Tomás de Aquino. O verdadeiro descanso é a alegria, claro, sem os excessos, por isso os descansos curtos e freqüentes são o ideal. Sertillanges julga que o campo proporcione maravilhas nessas horas, quando nossa alma se eleva a um plano muito alto em seu contato com a natureza, não permitindo que percamos o realismo em nossas concepções. “O imperativo categórico com certeza não foi concebido em um prado, que dirá a famosa moral aritmética de Bentham”, conclui ele, com bom humor.

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III – Aceitar nossas provações

A salvação só vem pela cruz, reitera o dominicano Sertillanges.

A provação do ideal que parece não se aproximar.

A provação dos tolos que não entendem uma palavra sua e se escandalizam.

A provação dos invejosos.

A provação dos bons que hesitam.

A provação dos medíocres.

Cita Sertillanges a grande passagem em João, 15,19, mais do que simbólica: “Se fôsseis do mundo, o mundo amaria o que era seu; mas, porque não sois do mundo, antes eu vos escolhi do mundo, por isso é que o mundo vos odeia.”

O trabalho é em si um remédio para os problemas tanto da alma quanto do corpo, contra a ansiedade e a preguiça. Com oração e trabalho, tudo pode ser superado, ressalta Sertillanges. “Só encontro uma resposta a todas as críticas,” dizia Emerson, “entregar-me de novo ao trabalho”. O relaxamento, discutido no capítulo anterior, também ajuda a aliviar esse sofrimento.

A verdadeira força espiritual é intensificada na perseguição.

Recolha as pedras que lhe forem atiradas e construa a sua casa. De toda forma, jamais esqueça: a verdade não defende a si mesma, a verdade é. Não confie plenamente em seus juízos e corrija os seus erros quando eles de fato aparecerem.

O que você deseja? A glória vã? O lucro? Então você não passa de um pseudo-intelectual. A verdade? Ela é eterna. Não se deve transformar a eternidade em uma utilidade.

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IV – Saborear as alegrias

Alegremo-nos mesmo nas nossas aflições e contradições. A tristeza e a dúvida matam a inspiração se a elas nos entregarmos.

A recompensa pelo trabalho é tê-lo produzido; a recompensa pelo esforço é ter crescido através dele.

Diz Sertillanges que, emulando uma qualidade dos santos, o verdadeiro intelectual parece escapar dos efeitos da idade, que para tantos homens equivalem à morte. No fim, santidade e real intelectualidade parecem partilhar de uma mesma essência.

A verdade é a santidade da mente.

V – Esperando pelos frutos

“Seguindo este caminho”, diz S.Tomás ao discípulo, “produzirás, na vinha do Senhor, folhas e frutos úteis todo o tempo da vida. Praticando estes conselhos, alcançarás o que desejas. Adeus”

O trabalho cria por si mesmo o seu instrumento – nos faz superar as nossas dificuldades naturais. Os resultados às vezes demoram, mas chegam. Tenha fé em si mesmo e seja fiel à sua vocação. Muitas obras e vidas são melhores do que as suas serão, mas ninguém é melhor para você do que você mesmo. Gostaríamos que nossa chama queimasse sem fumaças ou cinzas, mas tal não é possível, e é nossa primeira obrigação saber disso.

Depois, acrescente e repita com convicção: “Se fizer isso, produzirá frutos e alcançará o que deseja.” Adeus.

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Adeus, Sertillanges, e obrigado por tudo.

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No próximo domingo, começaremos uma série de posts com o resumo detalhado da magistral e exortativa obra de Boécio: A Consolação da Filosofia.

Até mais.

quarta-feira, 21 de outubro de 2009

A Vida Intelectual, por Sertillanges - IV

Cap. 7 – A preparação do trabalho

A LEITURA

I – Não ler muito

Como diz Tomás de Aquino, devemos ir ao mar pelos regatos, e não diretamente. A nossa necessidade primordial é saber como ler e como utilizar a leitura que fazemos.

1ª regra: não ler muito. Sertillanges não recomenda aqui a leitura limitada, mas a leitura sem a “paixão” tão proclamada por aí. Como toda paixão, ela monopoliza a alma, a perturba e exaure suas forças. Devemos ler com inteligência, não com paixão. Ordem, reflexão e concentração levando à criação.

O “leitor apaixonado” sobrecarrega olhos e mente, enquanto o leitor inteligente os preserva com carinho e com um objetivo. De todo modo, afirma Sertillanges:

Para avançar, é preciso remar; nenhuma corrente, por si só, o conduzirá aonde quer chegar. Abra, por si próprio, o caminho e não enverede por todas as sendas que lhe oferecerem.

Cortar principalmente a leitura menos sólida e menos séria. Recomenda Sertillanges que tentemos não envenenar nossas mentes com romances. De tempos em tempos, você pode ler uma boa ficção, mas, lembre-se, trata-se de uma concessão que você faz, pois muita ficção acaba perturbando a mente sem renová-la, confundindo nossos pensamentos.

Evitar ferrenhamente os jornais.

Convém saber o que os jornais contêm, mas eles contêm tão pouco; e seria tão fácil estar ciente desse conteúdo sem se entregar a intermináveis momentos de leitura preguiçosa!

Um intelectual sério deve se satisfazer com crônicas periódicas e só se dirigir aos jornais quando dos graves acontecimentos ou por artigos memoráveis (e olhe lá! Depende do jornal, escolha-o bem)

Como bem arremata Sertillanges: “nunca leia quando você pode refletir”.

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II – Escolher bem

Devemos não só escolher bem os livros como nos livros. Não confie em propagandas, títulos e artes chamativas. Tenha bons conselheiros a respeito da bibliografia. Vá direto à fonte para satisfazer a sua sede.

Procure se associar somente com os grandes pensadores, desenvolvendo o seu critério. Leia somente aqueles livros nos quais as idéias principais estão expressas em primeira mão – não há tantos assim, acredite (Mário Ferreira dos Santos já dizia que os maiores responsáveis pelos grandes erros da filosofia foram e continuam sendo os comentadores de segunda, terceira e quarta mãos, que com o tempo desfiguram as obras principais, facilitando as más interpretações). Os livros em geral repetem muito uns aos outros – ou se contradizem, e isso é também uma forma de repetição. Especialmente ao estudar a história da filosofia, ficamos sabendo que as descobertas no pensamento são de fato muito raras, e que as conclamadas “revoluções do saber humano” não passam de revisões de antigos debates.

Atenha-se ao fundamento, ao fundo permanente de idéias, não a individualidades. Claro, não há como negligenciar certas coisas; às vezes as descobertas vêm por meios enredados e lamacentos, mas procure evitá-los.

Ame os livros eternos que expressam verdades eternas.

Quando abrir o livro, tome o autor como um guia. Mas, não se esqueça, alerta Sertillanges: você é um homem livre e responsável e deve manter o domínio de sua própria alma. É o homem quem escreve livros, e o homem é por natureza imperfeito e corruptível. Filtre bem o que você lê. Acredite em Deus como segurança, porque Ele ama a Verdade e o Bem.

De qualquer forma, o valor de um livro é parte do seu próprio valor e do que você pode tirar dele. Leibniz tirou proveito de tudo; São Tomás formulou um grande número de pensamentos a partir da leitura dos heréticos e dos paganizadores de seu tempo.

Um homem inteligente encontra inteligência em toda parte.

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III – Quatro tipos de leitura

1) Leitura fundamental --> formação própria
Requisito: obediência.

2) Leitura de ocasião --> objetivo em particular
Requisito: domínio mental

3) Leitura estimulante --> adquirir ânimo pelo trabalho e pela prática do bem
Requisito: determinação

4) Leitura recreativa --> relaxamento
Requisito: liberdade


Todo começo deve prezar pela reverência aos mestres do pensamento. Você é um aluno, “você deve crer no seu mestre”, diz Tomás, repetindo Aristóteles. Não uma obediência cega, mas nobre. Só se aprende a comandar depois de obedecer, e o domínio do pensamento só é conquistado através da disciplina.

A escolha de um “pai intelectual” é uma coisa muito séria.

Sertillanges, como já ficou bem claro, costuma aconselhar São Tomás de Aquino como este guia e este pai para as doutrinas superiores, sem, contudo, limitar-se a ele. A obediência deve ser dirigida não a um autor, mas à verdade – sem jamais erguer-se contra aquele por particularidades. Siga os passos do seu mestre, não seja o seu próprio mestre antes que o tempo chegue e que você possa trilhar o caminho por si mesmo.

Quem lê visando um determinado trabalho tem a sua mente dominada pelo que planeja fazer; não mergulha na água, retira algo dela; mantém-se na margem, preservando a liberdade de seus movimentos.

O fascínio da leitura não pode interferir no propósito que a justifica.

Com relação à leitura estimulante, para Sertillanges irá depender das próprias experiências do leitor. O que ajudou antes irá ajudar novamente. Mantenha sempre ao alcance as obras que lhe revigoram para seguir a longa caminhada. Saiba perceber o que é que lhe auxilia neste sentido, quais são os seus “remédios” para a doença d’alma, sem hesitar em retornar a eles até que tenham perdido todo o efeito.

As escolhas para a leitura visando o puro relaxamento são bem menos importantes, embora seja importante entender que certos tipos de leitura não são recreativas o suficiente, enquanto outras o são demais (divertir em francês, dévoyer, no sentido etimológico significa “desviar do caminho”). (Sertillanges nos conta que conheceu um homem que descansara de uma trabalhosa obra lendo a monumental History of Greek Philosophy de Zeller. Era uma distração, mas não o suficiente para desviá-lo)

Somente uma coisa, de acordo com São Tomás, nos dá o verdadeiro repouso: a alegria. Portanto, procurar a distração em algo entendiante seria uma completa perda de tempo e de energia. Leia algo que goste, que não o excite muito a ponto de prejudicar o seu labor intelectual. Tenha inteligência para ler, mesmo nessas horas, ajudando a si mesmo “a desenvolver sua personalidade, a adornar a sua mente, a ser um homem”.

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IV – O contato com os escritores geniais

O convívio com os gênios é uma das graças que Deus concede a pensadores humildes.

Trata-se de um privilégio que pouco damos valor, mas que multiplica nossa alegria e amplia o nosso mundo, tornando-o um lugar mais nobre e melhor para se viver. Segundo Sertillanges, renova-se assim “a glória de ser um homem, de ter a sua mente aberta aos mesmos horizontes que os maiores, de viver nas alturas e de fundar com os seus semelhantes, com os seus inspiradores, uma sociedade em Deus”. Como disse Thérèse von Brunswick ao falar de Beethoven: “logo após os gênios, vêm aqueles capazes de reconhecer seu valor”.

Ao nos aproximarmos de gênios, subimos a outro plano. A sua superioridade por si só já nos beneficia. Como ilustração do que é a genialidade expressa de forma simples e sublime, Sertillanges sugere ouvir os prelúdios de Bach, cuja inspiração nos leva por um breve momento aos céus, onde “ficar e mover-se livremente seria o nosso sonho”.

(...) que bênção é poder elevar-se tão acima das futilidades! Isso nos afina e nos ajuda a fazer a justa apreciação dos fogos de artíficio pueris que tantas vezes formam o produto dos entretenimentos intelectuais.

“A mente humana não pode ir muito longe”, escreveu Rodin, “exceto com esta condição: que o pensamento do indivíduo seja somado paciente e silenciosamente ao pensamento de gerações.”

O gênio nos apresenta, abre as cortinas para a realidade que está lá, óbvia, e que nós não vemos. Através dele, o ser é que se comunica conosco, e não nossas próprias mentes. O gênio simplifica as coisas. Eles não refletem só sobre o seu tempo, mas sobre a humanidade.

A existência do gênio prova o erro dos pensadores maliciosos.

Um erro como o dos judeus que olharam para Jesus e disseram: “pode algo de bom vir de Nazaré?” Sim, algo de bom pode vir do nosso pobre mundo, pois que dele veio um Platão.

Grandes homens também erram, é claro, e com eles também temos a aprender. Não são erros vulgares, mas excessos – mesmo em seus enganos, há no gênio a profundidade e agudez de visão. Segundo São Tomás, nós devemos tudo à verdade, e assim nós devemos àqueles que erraram e que pelo seu erro desenvolveram a nossa mente; é através deles que trabalha a Providência. A Igreja deve às heresias, a Filosofia deve aos sofismas. Como diz Sertillanges, “quem tropeça sem cair dá um passo maior adiante.”

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V – Reconciliar ao invés de acentuar opostos

Lembremos: não nos interessam pensamentos, mas verdades.Não disputas, mas obras e o que delas restar. É futil insistir em diferenças quando tão frutífera é a busca de pontos de contato.

São Tomás, por exemplo, era um grande aristotélico, mas inclinava-se para Platão; sem ser agostiniano, seguido se alimentava da doutrina de Santo Agostinho. Disse que Averroes era um corruptor do peripatetismo, e mesmo assim também o chamava de “sublime espírito” (praeclarum ingenium), citando-o diversas vezes.

Assim, não busque só qualidades, mas a verdade e a penetração filosófica. A crítica constante estreita a inteligência e o afasta da verdade. A fofoca também existe no meio intelectual, mesmo na Teologia! Eleve-se acima dela com toda sua alma. Esqueça a ambição por notoriedade, o embate de partidos, o espírito da discórdia, o estímulo artificial da inteligência. A verdade, nada menos do que ela.

Lancemos pontes, não cavemos fossos entre as suas doutrinas.

As colunas do prédio estão distantes, mas um arco as une no topo.

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VI – Assimilando a leitura e vivendo por ela

Nós comemos para viver, enriquecemos para usar a riqueza, e lemos para pensar. Sertillanges nos alerta para evitarmos atingir o automatismo intelectual. Mesmo sem ler demais, podemos acabar mergulhando numa corrente de indolência.

Um homem que sempre ouve pode nunca aprender.

Apenas obedecer não basta, devemos ter o espírito ativo. Conforme bem diz Sertillanges, “a leitura nos mostra a verdade; temos que torná-la nossa.” Boécio já afirmava que “pela doutrina, a mente do homem só é estimulada a saber”, e não a investigar.

Esse infinito mar de sinais e fenômenos que temos diante de nós não produz conhecimento por si só; o nosso espírito operando sobre eles é que o produz. O pensamento em si é incomunicável de homem para homem. Aprendemos não com olhos e ouvidos, mas com a alma, e o ensino nos dá as ferramentas para fazê-la operar. A mente é iluminada pela própria luz, e, em última análise, pela luz de Deus, que é o nosso único e absoluto mestre.

A origem do conhecimento não está nos livros, está na realidade e em nosso pensamento. Livros são postes de sinalização; a estrada é mais antiga, e ninguém pode fazer a jornada para a verdade por nós mesmos.

Sertillange tece uma bela metáfora: juntar a lenha é essencial, mas sem a faísca não há fogo. É só através do nosso próprio esforço que adquirimos conhecimento. Intelectualmente, “nascemos velhos e devemos tentar morrer jovens”. Precisamos tentar ser nós mesmos, e não há forma mais elevada de se buscar isso do que através do trabalho intelectual.

Termina o capítulo com uma citação de Schopenhauer: “Quando só se fala do que se lê, ninguém nos lê”.

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ORGANIZANDO A MEMÓRIA

I – Que coisas devem ser retidas

A capacidade da memória varia muito nos grandes homens, e nem podemos classificá-los por tal capacidade, mas é inegável o valor de uma boa memória. Aquino nos diz para acumularmos tudo que pudermos de valioso, lembrando que “a comida excessiva é um veneno”.

Não vivemos pela memória, mas a usamos para viver. Guarde tudo o que contribui para o seu propósito intelectual. Quanto ao resto, deixe para o esquecimento.

Pascal tinha o melhor tipo de memória – a que retém só o que deseja reter. Ora, a felicidade para Santo Agostinho era “desejar nada além do bem e ter tudo o que se deseja”.

Se não for bom de memória, não se apavore. Use o que lhe foi dado, e não o que lhe falta! Ademais, a memória, como a própria mente, pode ser exercitada, especializada. Para os católicos, Sertillanges afirma que devem todos “santificar sua memória”, decorando vários salmos e repetindo-os durante o dia.

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II – Em que ordem devem ser retidas

A memória deve escapar do caos, deve ter hierarquia. Procure sempre por conexões e condições disso e daquilo, como se a sua mente fosse um mundo aguardando pela investigação científica.

Uma mente bem organizada é como uma árvore genealógica.

De nada adianta uma miríade de noções sem o entendimento de noções primordiais. Concentre-se na memorização das idéias centrais a cada área do seu saber, deixando as particularidades em segundo plano. Quando novas idéias entrarem na sua mente, agirão retroativamente, avaliando quais os princípios ali são subjacentes a elas. Como diz Sertillanges, “Há, em cada matéria, certas ideias dominantes, que são chaves para tudo”.

Hierarquia + princípios guiadores = a melhor memória e o melhor estudo

A memória é o mecanismo de adaptação do pensamento ao cosmos.

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III – Como podem ser retidas

São Tomás propõe:

1) Ordenar o que se quer reter

2) Aplicar a isso o espírito

3) Meditar sobre isso com freqüência

4) Ao desejar reter algo, tomar a cadeia de conexões daquela idéia por uma ponta, que ela trará o resto consigo.

Assim como Cícero, ele ainda sugere que se conecte a memória das coisas intelectuais com a das coisas sensíveis, pois estas são o objeto próprio do intelecto e pertencem à memória por si mesmas. Faça analogias, metáforas, estabeleça pontos de contato muito claros entre sensível e inteligível. Busque conexões, genealogias, razões ordenativas. Fundamente-se no método silogístico clássico, onde as premissas levam à conclusão. Ao tentar se recordar de algo, pense em todas as circunstâncias ligadas aquele fato que fora retido, como um detetive da sua própria mente.

Acima de tudo, procure manter a atenção, a concentração, a vontade de saber, o espírito intelectual de que este livro tanto fala. Reflita sobre o que é para ser lembrado, pondere, reanalise, circule a idéia na sua mente.

A mente agitada se opõe a estas operações, e, portanto, uma vida pacífica, livre de paixões, é necessária para o bom uso da memória assim como de todas as funções intelectuais.

A memória, enfim, não se trata de quantidade, mas de qualidade, ordem e habilidade no seu uso.

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AS NOTAS

I – Como tomar notas

Leitura + memória + anotações = obras

As anotações são como memórias em papel e se transformam em um grande suplemento para o nosso trabalho. Se fôssemos confiar somente na memória mental, o resultado final seria desastroso, afirma Sertillanges. A memória é um servo não muito confiável per se, como já vimos – ela perde as coisas, ou as enterra, e às vezes não responde chamados....

Lembrar a coisa certa no momento certo exigiria do intelectual um auto-domínio sobre-humano. Assim, livros de anotações e cadernos serão de grande ajuda, como um banco para depositar e retirar a qualquer hora.

Há dois tipos de anotações, ressalta Sertillanges: as mais descompromissadas, e as com objetivos bem delineados para o trabalho mais à frente. Ele nos recomenda que evitemos o excesso com ambos os tipos de notas; muito material disponível pode acabar nos atrapalhando depois, desviando o nosso foco e até perdendo o seu uso.

Sertillanges sugere esperar um pouco durante a leitura antes de sair anotando:

Com calma e à distância certa, você julgará o valor da sua colheita e armazenará somente o bom grão em seu celeiro.

Adapte as notas à sua personalidde, aos seus objetivos. Leia cada obra com uma certa expectativa, guiando suas anotações de acordo com ela. Toda leitura deve ter um propósito.

Com boas anotações, uma obra pode estar terminada antes de começar.

A inspiração é como uma graça, que passa por nós e não volta.

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II – Como classificar as notas

É inútil fazer uma anotação se você não puder encontrá-la de novo no momento certo.

Portanto, organize-se. Contudo, Sertillanges alerta-nos quanto ao excesso, porque exagerar na organização das anotações é uma “prática deplorável”. É como colecionar brinquedos no quarto.

A ordem é uma necessidade, mas ela deve nos servir, e não o contrário.

O autor sugere a utilização de pastas de arquivos que deixem visíveis as suas classificações, conforme os assuntos em estudo. Sertillanges ainda dá algumas dicas particulares de organização, com base em fichas classificadoras, caixas e gavetas, e ainda recomenda que se observe o método decimal das bibliotecas (embora a mim isso seja uma rigidez digna da ressalva do próprio autor).

Acima de tudo, ser prático.

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III – Como utilizar as notas

Coletadas as notas, temos dois caminhos possíves:

1) com um plano em mente, ordená-las

2) sem um plano em mente, buscar a ordenação a partir delas

Ao se traçar idéias gerais, seja qual for o método, as idéias começam a pipocar. Pouco a pouco, uma ordem superior irá emergir da plano de anotações, dando forma à matéria-prima.

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No próximo post, veremos a quinta e última parte do nosso resumo sobre A Vida Intelectual de Sertillanges.

domingo, 18 de outubro de 2009

A Vida Intelectual, por Sertillanges - III

Cap. 5 – O CAMPO DO TRABALHO

I – O estudo comparado

Segundo Sertillanges, não há um conselho preciso e restrito aqui, mas algumas dicas podem ser seguidas.

Por exemplo, nenhum campo do saber sobrevive por si mesmo, devemos ter noção disso. Precisamos passar por cada campo para corrigir gradualmente o centro do nosso saber, de modo que ele fique cada vez mais próximo da verdade. Lembremo-nos que as ciências nada mais são do que recortes do conhecimento pleno do real.

O intelectual deve manter o “ardor épico” de viajar pelas maravilhas do mundo do conhecimento. Homens geniais, grandiosos costumam ser universais – excelentes em um campo, competentes em outros. Organize os seus estudos, divida o tempo entre os diferentes assuntos e a sua ordem hierárquica de interesse. Em todos eles, vá direto ao essencial.

Assim como nenhuma área particular do conhecimento é auto-suficiente, também todas as áreas juntas não são auto-suficientes sem a rainha do conhecimento, a filosofia, nem o todo do conhecimento humano sem a sabedoria que brota da própria ciência divina, a teologia.

Não é por menos que Sertillanges se diz “assustado” com a configuração moderna do conhecimento, na qual a filosofia se afasta das ciências, sendo estas julgadas como filosofias em si mesmas.

As ciências sem a filosofia descoroam-se e perdem sua direção. As ciências e a filosofia sem a teologia descoroam-se ainda mais lamentavelmente, já que repudiam uma coroa divina, e perdem-se ainda mais irremediavelmente, pois a terra sem o céu não pode encontrar o caminho de sua órbita, nem as influências que lhe dão frutos.

Como diz Charles Dunan em Les Deux Idéalismes: “Para a filosofia moderna, os problemas transcendentais não existem. Mas o contrário é verdadeiro: se estes problemas existem, é a filosofia moderna que não existe.”

A ordem do espírito deve corresponder à ordem das coisas.

Portanto, existindo um Ser primeiro e uma Causa primeira, é lá que se completa e ilumina ultimamente o saber. Primeiramente como filósofo, por meio da razão, em seguida como teólogo, utilizando a luz que vem do alto, o homem de verdade deve centrar a sua investigação naquilo que é ponto de partida, regra e fim a título primeiro, naquilo que é tudo para tudo e para todos.

Hoje, que universais, que transcendentais? Resta apenas o caos. Uma summa, uma bíblia, uma arquitetura do saber não é mais possível. Cada homem que deseja conhecer deve construir “a sua summa pessoal”, introduzir ordem ao conhecimento através dos princípios que for descobrindo.

Recomenda Sertillanges que, para entender a ciência teológica, se estude a Summa Theologica de São Tomás de Aquino, tendo à mão o “Catecismo do Concílio de Trento”. Trata-se de um começo difícil, mas logo vem a recompensa. Recomenda também que se estude o latim, para facilitar a compreensão e o acesso a diferentes obras antigas. Deve-se aproveitar obras introdutórias ao pensamento tomista, e para isso Sertillanges indica o seu Saint Thomas d’Aquin e a obra Eléments de Philosophie de Jacques Maritain.

Um tutor receptivo e erudito seria uma ótima companhia nesta caminhada inicial, mas, ainda assim, Sertillanges propõe a solidão. O caminho é duro, sim, porém é totalmente trilhável, e a leitura de Tomás de Aquino será uma bela aula. Compare textos e pessagens, consulte compêndios e enciclopédias, escreva, organize e assente idéias.

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II – O tomismo, esquema ideal do conhecimento

A necessidade de um “corpo diretivo” na percepção intelectiva do Universo. A perda desse sistema coerente, como já bem ressaltou Sertillanges, é um dos grandes males de nossa era.

A genialidade “não possui data”. As coisas eternas são coisas eternas.

Em comparação da água barrenta que nos servem, ele é manancial límpido. Superadas as primeiras dificuldades da maneira de expor arcaica, S. Tomás tranquiliza o espírito, estabelece-o na claridade plena e oferece-lhe quadro maleável e forte para as ulteriores aquisições. O tomismo é síntese. Nem por isso é ciência completa; mas a ciência completa pode apoiar-se nele como num poder de coordenação e de sobrelevação por assim dizer milagroso.

Como um sistema harmônico e sintético, o tomismo reconcilia sistemas adjacentes, indo ao encontro dos fatos. Supino na metafísica, na psicologia racional, na cosmologia, na ética, é como uma arca da salvação. Admite a falibilidade, é claro, pois não se perde na fé. “Tanto o conhecimento quanto a fé nele se convergem, porque tomou a sua posição entre eles como uma fortaleza no encontro de duas estradas.”

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III – Nossa especialidade

Quanto mais se sabe, melhor, mas a mente enciclopédica é uma inimiga do conhecimento.

Conhecimento verdadeiro = scientia = profundezas das causas

Como diz Sertillanges, “devemos sempre sacrificar a extensão pela penetração”. Se em capítulos anteriores, ele professa alguma abrangência, é mais como forma de “preparação mental”. Quando esta formação básica é atingida, então é hora de cavar fundo.

Vencer uma dificuldade é bom; é preciso; mas a vida intelectual não deve ser uma acrobacia permanente.

Devemos trabalhar com gosto, sempre, e não se trabalha com gosto naquilo que não lhe desperta a curiosidade fundamental. Ademais, a nossa entrada em muitas áreas diferentes acaba nos horizontalizando, relaxando o nosso ímpeto vertical, o nosso caminho à verdade superior. Há também a impossibilidade física, biológica, de poder abarcar tudo.

Querendo ser legião, se esquece de ser uma pessoa; tentando ser um gigante, se diminui a própria estatura como homem.

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IV – Os sacrifícios necessários

Sertillanges é bem direto: tudo nos atrai, nos interessa, mas a morte nos espera. Devemos nos submeter e descansar contentes diante das coisas que o tempo e a sabedoria nos negam. Mostremos a nossa humildade, respeitemos as nossas limitações. A virtude e a dignidade brotam desta postura. Meçamos a nós mesmos, meçamos as nossas tarefas. Não sejamos desertores de nós mesmos ao querermos substituir todos os outros.

O homem semi-informado não é o homem que conhece só a metade das coisas, mas o homem que sabe das coisas somente pela metade.

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Cap. 6 – O ESPÍRITO DO TRABALHO

I – O ardor da investigação

Antes de tudo, o espírito da determinação deve estar presente, porque estabelece a mente ativa.

A mente é como uma criança cujos lábios nunca cessam em seus porquês. Nossas alma não envelhece, ela sempre cresce em relação à verdade ela é sempre uma criança.

Indolência e preguiça são os grandes inimigos do conhecimento. Como exclamou certa vez Leonardo Da Vinci, “ó, Deus, tu vendes aos homens todas as coisas boas pelo preço do esforço”.

A mente é incrivelmente plástica – pode sempre voar mais alto. Nunca se entregue aos bons resultados e ao reconhecimento alheio. Prossiga, insista, avance em direção à densa verdade. Mantenha o espírito do conquistador, o espírito do herói em sua odisséia. Seja cada vitória é como um ensaio para a próxima, e a derrota o seja apenas na morte.

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II – A concentração

Este espírito de zelo deve conciliar-se com a concentração recomendada por todos os homens de pensamento profundo. Nada mais funesto do que a dispersão. Difundir a luz é enfraquecê-la em proporções geometricamente crescentes. Pelo contrário, concentrando-a pela interposição duma lupa, o que era aquecido pela livre irradiação arde agora no foco onde o ardor se ateia.

Deixe a sua mente virar uma lupa. Não por acaso é este o símbolo da investigação, da busca. Concentre todos os seus poderes n’um só ponto. Cavar sempre o mesmo buraco nos leva cada vez mais fundo. O trabalho inspirado, a verdadeira criação, depende de poucos elementos fundamentais às suas configurações, basta que sejam bem dirigidos.

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III – A submissão à verdade

Acima da disciplina do trabalho, a disciplina da verdade. Toda descoberta é o resultado de simpatia entre o “Deus interior” e o “Deus universal”, uma mente humilde para um universo ativo. Segundo Sertillanges, nossa inspiração utiliza mais o nosso inconsciente do que a nossa iniciativa. Com o intuito de descobrir a verdade, não olhamos para a nossas mente, mas através dela. Não façamos como os filósofos modernos, não confundamos os meios com os fins. Nossa simpatia com a verdade deve ser como um permanente “êxtase pensante”, afinal só a verdade existe, só o ser é.

Não pensemos de onde é que vem a idéia, mas qual a essência dela. Não importa se Platão, se Aristóteles, se Leibniz... só a verdade é que importa. Treinemos nossas mentes a esse respeito.

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IV – Ampliando a percepção

Por mais restrito que seja o seu momento de concentração, tanto o sujeito quanto o objeto tendem para o universal. Há uma síntese entre o abrangente e o detalhismo (perda de senso de unidade) que devemos encontrar. Ao mantermos o estado de meditação, coadunando pensamento e sentimento, erguemos nossa mente ao alto. E Sertillanges dá um conselho muito importante, principalmente nos tempos de hoje:

Fuja das mentes que não podem nunca se elevar acima de suas regras acadêmicas, que são escravas de seu trabalho ao invés de fazê-lo na plenitude da luz.

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V – O sentido do mistério

Mesmo quando a verdade nos der um belo sorriso, nosso sentido de mistério e perplexão deve permanecer.

Os que pensam que entendem tudo provam por isso mesmo que não captaram nada.

Toda resposta é provisória, toda pergunta a Deus só Deus pode responder. Como diz Claude Bernard, “para entender uma única coisa completamente, teríamos que entender todas as coisas”. São Tomás ao fim de sua vida chegou a declarar, em um famoso epísodio, que não podia mais escrever, afirmando: “tudo o que escrevi me parece palha perto do que vi”.

Não alimentemos a presunção de desejar que chegue depressa este elevado desespero; ele é uma recompensa, é o segredo precursor do grande grito que faz vibrar a alma inundada de luz.

A luz lá no fundo nos estimula para prosseguirmos. A luz que projeta as figuras na caverna nos incita a nos libertarmos das correntes e vermos o sol em sua plenitude. O mistério é essa luz que aos nossos olhos sempre redunda em sombras.

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No próximo post, seguiremos o resumo sistemático deste importante livro.

quinta-feira, 15 de outubro de 2009

A Vida Intelectual, por Sertillanges - II

Sigamos o resumo sistemático desta magnífica obra.

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Cap. 3 – A ORGANIZAÇÃO DA VIDA

I – Simplificar

Organize sua vida material, não sobrecarregue uma caminhada que já é por si só tão difícil. Simplifique a sua vida.

A vida mundana é fatal para o estudo. A ostentação e a dissipação da mente são inimigos mortais do pensamento.

Obedeça a si mesmo, não aos meros costumes. A vocação não se dá sem a concentração. Seus gastos e sua atenção seriam muito melhor aproveitados na coleção de uma biblioteca particular, numa viagem instrutiva ou em feriados para se descansar, ouvir música, etc.

Em seguida, Sertillanges discorre sobre o importante papel que tem a esposa de um intelectual nestes cuidados – em um trecho que provavelmente arrepiaria os cabelos das “mulheres modernas”. A mulher, segundo ele, deve colaborar, evitando levar o marido às trivialidades que não possuam conexão com as aspirações intelectuais. Ela deve ter compreensão, acima de tudo.

Depois do esforço do trabalho, o homem é como que um soldado ferido; precisa ser cercado de carinho e quietude (...) Seja como uma mãe para ele. Isso lhe dará novas forças e o manterá vivo para novas batalhas.

Sobre as crianças, diz Sertillanges que elas de fato tomam muito do nosso tempo, especialmente quando pequenas, por outro lado, elas é que são capazes de elevar a nossa inspiração com a sua alegria e sua inocência, defendendo-nos do “reino do abstrato”. Elas são a imagem do futuro e um motivo de esperança.

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II – Solidão

A solidão é importantíssima, como São Tomás de Aquino já destacava:

Mostra-te amável para com todos [mas] não sejais muito familiar com ninguém, porque a demasiada familiaridade gera o desprezo e dá matéria a muitas distrações.

A célula monástica é como um símbolo desta postura. Todas as grandes obras da humanidade foram preparadas no deserto, incluindo a Redenção do mundo. O próprio fiat lux divino surgiu de um imenso e solene vazio. Afirma Sertillanges:

O retiro é o laboratório do espírito. A solidão interior e o silêncio são as suas duas asas.

Na multidão, o homem perde a sua identidade. Tomás de Kempis dizia em sua Imitation: “I have never hone amongst men without coming back less a man”.

“Como te chamas?” “Legião” – eis a resposta do espírito disperso e dissipado na vida exterior.

Como sempre, os excessos são prejudiciais. Quem se une a Deus mas não aos seus irmãos é um mentiroso, um falso místico, um falso pensador. Quem se une aos homens e à natureza sem estar unido com Deus – sem amar o silêncio e a solidão – é somente um sujeito do mundo, de um “reino de morte”.

Sertillanges reitera: ao decidirmos procurar a Verdade, fizemos uma escolha muito importante; devemos ser fiéis a ela e a nós mesmos.

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III – A cooperação com seus iguais

Recomenda ele que se busque a associação de mentes, coisa tão difícil nesta era de individualismo e anarquia social. Se as antigas oficinas e guildas eram uma reunião de amigos, uma família, hoje as associações são como uma masmorra, uma reunião estritamente formal.

Ter a força para a empreitada agindo sozinho é duríssimo. Começa-se com entusiasmo, e então, assim que alguma dificuldade surge, o demônio da preguiça sussura ao ouvido.

Contar com o apoio de outros que trilhem o mesmo caminho, seguir os bons exemplos, manter a troca de idéias, são sempre atitudes eficazes.

A amizade é uma arte obstétrica; utiliza nossos mais ricos e profundos recursos; abre as asas de nossos sonhos e obscuros pensamentos; ela serve como fiscal de nossos julgamentos, testa nossas novas idéias, mantém o nosso ardor e inflama o nosso entusiasmo.

A amizade, como já ensinava Aristóteles, é a união de espírito.

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IV – O cultivo de contatos necessários

Como já dito, solidão não significa negligência de responsabilidades. Certos contatos são necessários, parte de nossa vida.

Faça o que deve e o que for preciso; se a sua humanidade exigir, as diferentes demandas que ela fizer irão encontrar seu próprio equilíbrio. O Bem, que é irmão da Verdade, ajudará a sua irmã.

Devemos nos mover na riqueza para contemplá-la, não nos afastarmos dela. Solidão demais empobrece a vida. Mesmo um escritor prolífico não deve se trancafiar, ora, nem os monges se trancafiam. O homem muito isolado se cria tímido, abstraído, até um pouco excêntrico. Ele olha para as pessoas como se elas fossem uma proposição a entrar num silogismo, ou um exemplo para ser anotado num bloco de notas.

Por outro lado, referindo-se mais uma vez à mulher do intelectual, diz Sertillanges que a ela não deve abrir a porta da casa para qualquer um. Deve-se estimar a presença dos sábios, não dos “espertos”, dos “gênios”. O casal deve buscar se afastar da frivolidade e da vaidade. Mesmo os tolos têm lá o seu papel, mas não é preciso sair à procura deles, pois que existem aos montes por aí.

Por fim, devemos ser moderados nas conversas:

O valor de uma alma se mede pela abundância do que ela não expressa.

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V – Conservar a dose necessária de ação

Como dito acima, encontrar o equilíbrio correto entre a vida interior e a vida externa, entre o silêncio e o som, porque “o pensamento e a ação têm o mesmo pai”.

O homem que concentra todos os seus poderes no pensamento perde facilmente o seu equilíbrio. Uma diversão é indispensável para a vida mental; precisamos do efeito tranqüilizador da ação.

À força de cultivar o silêncio, corre-se o risco de chegar ao silêncio de morte.

Não só de livros devemos nos alimentar, mas também de fatos concretos. Para Sertillanges, as idéias estão nos fatos, e não vivem por si em uma realidade separada, como pensava Platão. As idéias estão plantadas no solo do real, bem mostrou Aristóteles. Quanta experiências a vida nos oferece todos os dias? Um profundo pensador tira proveito delas.

A idéia em nós desprovida de seus fantasmas (designação escolástica-aristotélica para os resíduos do real deixados em nossa imaginação e que servem de insumo para nossas abstrações) é só um conceito vazio. Onde tivermos mais fantasmas, mais completo e vigoroso será o pensamento.

Recortes da vida + idéias abstratas = idéias concretas

Se você ainda não se vê tomado de exigências intelectuais, busque por causas que o inspirem, que valham a pena. Busque a luz, a reabilitação, a preservação, o progresso, o bem público, enfim. Que as suas causas não demandem toda a sua vida, mas pelo menos todo o seu sujeito, e o “paraíso que se abrirá para você será ainda mais amável, porque você terá provado tanto os tesouros quanto os perigos e os caminhos sinuosos da terra”.

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VI – A preservação do silêncio interior

O espírito do silêncio deve invadir toda a vida. O estado da solidão é a mãe dos resultados; não a solidão em si. Tanto é que Sertillanges, bem diz, pode conceber uma vida intelectual baseada em duas horas por dia de estudos.

De todo modo, devemos ser integralmente intelectuais, o tempo todo, nos submeter sempre à verdade, à Deus. Assim, nos elevaremos acima das coisas ao invés de nos afastarmos delas.

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Cap. 4 – O TEMPO DE TRABALHO

I – O trabalho permanente

Conforme Sertillange,s o Evangelho nos diz que a oração deve ser ininterrupta.

A oração é a expressão de desejo, seu valor vem de nossas aspirações interiores (...) Remova o desejo, a oração termina, altere-o, a oração se modifica, aumente ou diminua sua intensidade, a oração se eleva ou perde suas asas.

Mesmo que não expressemos os nossos desejos, o puro desejo garante a verdade da oração. Para Sertillanges, o orar é como um querer mais, uma vontade de poder transcendente do espírito, o desejar de coisas eternas (aquilo que Nietzsche chamava de mehrwollen). Ora, o estudo, em seu desejo pelo conhecimento, é como uma oração ativa.

Se os mais dos homens se deixam prender por desejos errôneos, o pensador é obsidiado pelo desejo de saber; porque o não utilizará, aproveitando-o como se aproveita um curso de água para mover uma turbina?

Diz São Tomás: “Empenha-te em encerrar no cofre do espírito tudo quanto puderes, como quem pretende encher um vaso”.

Mantenha o seu espírito alerta. A verdade está em todas as partes, nas ruas, nas conversas, nos teatros, nas idéias, nas visitas, nas andanças, nos livros mais comuns. Toda contemplação permite uma reflexão mínima, “toda captação de luz pode levar ao sol; toda estrada aberta é um corredor para Deus”.

Como disse Lamennais em Saint-Malo, diante do mar durante uma tempestade, “todo mundo enxerga o que eu estou enxergando, mas ninguém vê o que eu vejo”.

Aprenda a ver.

Um pensador é como um filtro, no qual as verdades quando por ele passam deixam a sua melhor substância.

Aprenda a ouvir.

Um peão em certos momentos é mais sábio do que um filósofo. [ou como disse o grande São Tomás de Aquino: uma velhinha com fé, de certa forma, sabe mais do que Aristóteles]

O pensador mantém durante toda a sua vida a curiosidade da infância, retém a sua vivacidade de impressão, a sua tendência em ver tudo sob um aspecto de mistério. O pensador se impressiona com o mundo e o admira para todo o sempre.

Sobre os grandes gênios, Sertillanges ressalta que eles não o são considerados até depois de sua morte. A maioria das pessoas não os reconhece, não os vê, não os ouve. O gênio está à frente de seu tempo, essa é propriamente a sua definição.

As grandes descobertas são só reflexões sobre fatos comuns a todos. (...) O que é o conhecimento, senão a cura lenta e gradual de nossa cegueira?

Sertillanges reprova o dualismo espiritual, q ue divide o homem entre a alma esforçada e focada e a alma indolente do cotidiano (um erro que domina o famoso livro da década de 30 de Dorothe Brande sobre como viver a vida de escritor). Não há necessidade alguma de tensão dentro de nossas almas. O que se deve fazer é pôr um controle no imenso recurso da mente. Não há esse desgaste mental que as pessoas imaginam; há um trabalho imprevisível por parte do cérebro – as idéias “pipocam”, qualquer um pode experimentar isso.

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II – O trabalho noturno

Père Gratry nos diz que não devíamos excluir de nossos estudos as horas de letargia e escuridão. Dormir é relaxar uma tensão, é entregar-se à natureza por um momento, como um pequeno abandono do livre-arbítrio individual e uma disposição total ao jogo das forças cósmicas, que permite uma reconfiguração interna em nossas almas. Tirar proveito deste processo é um ótimo recurso para o pensador. Não podemos ser como corujas; lembremo-nos que respeitar e cuidar do corpo é um dos fundamentos da saudável vida intelectual. O sono não é um problema nem um princípio, ele serve ao corpo e à alma.

Idéias novas, caminhos inéditos, todos podem despertar de manhã junto com você. Sertillanges recomenda que se tenha sempre à mão um bloco ou caderno. Faça uma anotação sem ter acordado completamente, se possível, sem mesmo ligar a luz, e então volte para as sombras. Descreva este distinto universo da semi-consciência.

Todo pensador passa por estes surpreendentes e muitas vezes miraculosos momentos de “lucidez matutina”. Muitos tratados, invenções e resoluções vieram destes momentos.

Anote sempre. Escreva enquanto a idéia estiver viva, não adicione nada por sua conta. Escreva do jeito que ela vier, não se preocupe com o estilo e a retórica – embora um estilo precioso possa aparecer involuntariamente.

Desta forma, você tira proveito das vinte e quatro horas do seu dia, garante Sertillanges. Lembremos que o sono age sobre o material já existente; ele não cria nada por si. Assim como o trabalho gentil e regular pode trazer harmonia ao dia, o trabalho inconsciente da noite pode trazer paz e manter as imaginações vagando em nossa mente. Como diz Sertillanges, “a noite dá conselhos. O descanso não é a morte; é a vida, e toda vida rende frutos”.

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III – As manhãs e os serões

A manhã é sagrada, diz Sertillanges. Nossa alma, renovada, vislumbra o seu futuro. É o momento de confirmar nossas vocação como homem e como intelectual.

Acordar de manhã deve ser como emergir das horas profundas de inconsciência, renovado e passando os olhos pelo horizonte da vida. Deveríamos ouvir a nossa própria voz, que possui grande poder de auto-sugestão. Não negligenciar este “escravo” – ele é você, e “a sua própria voz chega com a estranha dominação de quem é ao mesmo tempo igual e diferente”.

Père Gratry sugere ao intelectual cristão a oração Prima pela manhã e a Completa à noite. São orações “completas e doces” segundo Sertillanges, onde está toda a verdadeira natureza e vida. Recomenda o “pai nosso” para pedir o pão e a comida para alimentar a inteligência, e a Ave Maria dirigida à “Mulher vestida com o sol, vitoriosa sobre o erro e sobre o mal”.

Preconizamos o espírito de oração: onde poderá ele nutrir-se melhor do que nas contemplações matinais, quando o espírito repousado, ainda não preso pelas preocupações do dia, levado, erguido nas asas da oração, sobe facilmente aos mananciais da verdade que o estudo dificilmente capta?

Tenha fé, vigor d’alma e coragem logo de manhã, diz Sertillanges, e o resto do seu dia será tomado pelo brilho de tal postura. Ao cair da noite, antes da luz se extingüir, haverá a esperança, como a esperança que temos antes da última hora do Ano Novo.

A noite é muito desperdiçada, muito pouco aproveitada. Os homens comuns, trabalhadores, utilizam-na para “relaxar” para o sono.

Sim, relaxados como o violino cujas cordas se tivessem distendido totalmente. Que trabalhos no dia seguinte, para tornar a afiná-las!

Para o intelectual, sua noite deve ser um momento de quietude, sua ceia uma leve refeição, sua diversão a simples tarefa de ajustar o trabalho do dia e preparar o de amanhã. Não se encontra descanso na dispersão de energia. Há na noite bem aproveitada um verdadeiro duplo descanso – espiritual e físico. Interessante notar como algumas pessoas no sono inconscientemente assumem a posição fetal; isto é um símbolo do sono como um retorno às nossas origens!

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IV – Os momentos de plenitude

Tratemos aqui do trabalho intelectual em si mesmo.

Estude, diz Sertillanges, pondere sobre sua vida. Quais as melhores horas? Qual o melhor turno? Se dispuser de poucas horas e puder situá-las livremente, dê preferência à manhã, mas isso pode variar de acordo com cada um. Ao escolher o horário de estudo, planeje-se.

Será preciso tudo prever para que nada venha obstruir, dissipar, reduzir ou enfraquecer tão preciosa duração. Se quiser que seja uma hora de plenitude, comece por excluir as preparações longínquas; tome todas as disposições úteis; saiba o que quer fazer e a maneira de o fazer; junte os materiais, as notas, os livros; não se incomode com ninharias.

Levante-se pontualmente e imediatamente, tome um café da manhã leve, evite conversações fúteis, ligações inúteis, limite a sua correspondência para o que for estritamente necessário, esqueça os jornais. Todas estas recomendações servem para as horas mais intensas de estudo. O grande objetivo é utilizar o tempo a seu máximo valor. Além disso, o semi-trabalho não é bom nem para o descanso e nem para o próprio trabalho. Devemos ter energia, ser insistentes.

Faça alguma coisa ou não faça nada. O que decidir fazer, faça ardentemente; faça-o com afinco, de modo que toda a sua atividade seja uma série de vigorosos novos começos.

Renovemos o que Sertillanges chamou de “o espírito de oração”, mantendo-nos no estado da eternidade, mente e coração obedecendo sempre à verdade, admirando-a com a plenitude da alma, ouvindo a harmonia da natureza, como Cipião em seu sonho contado por Cícero.

Você deve assegurar-se de que não será perturbado nas suas horas sagradas. A segurança leva à intensidade e à produção intelectual. Como diz Sertillanges, mantenhamos “um cerberus na porta”, pois “cada demanda de você vinda de fora é uma perda de energia interna e pode custar à sua mente alguma preciosa descoberta”. Como disse Emerson em seus Poems: “when half-gods go, the gods arrive”.

A solidão não precisa ser física, ressalta. Um outro intelectual fazendo-lhe companhia é até um reforço, emulando a atmosfera das bibliotecas na busca pela verdade. De todo modo, quando conseguir a solidão das inutilidades do mundo, defenda-a a todo custo. Você é um servo da verdade, e não do mundo.

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No próximo post, exporemos os capítulos de Sertillanges sobre o escopo, o espírito e a preparação do trabalho intelectual.