domingo, 22 de novembro de 2009

A Consolação da Filosofia, por Boécio - II

A felicidade

A fortuna (destino) muda, e os homens também devem mudar com ela. Boécio deve a sua desgraça ao seu desejo pela felicidade mundana.

Nenhum homem, por mais feliz e materialmente realizado que seja, pode resistir à fortuna e ao sofrimento, pois quem tem de tudo teme por seu futuro, ou teme perder sua fonte de alegria. Uma coisa minúscula pode fazer o mais feliz dos homens vacilar em sua felicidade a ponto de pensar tê-la perdido totalmente. Por que então procuram a felicidade do lado de fora, quando ela lhes foi incutida por dentro, pelo poder divino?

O pináculo de toda a felicidade é a bondade.

A sabedoria, ao contrário da felicidade, jamais pode ser perdida. Por isso a fortuna não pode dar ao homem felicidade, pois tanto fortuna quanto felicidade são inconstantes.

“Além disso, o homem que possui estes bens mundanos, ou sabe que eles irão lhe deixar ou não sabe. Se não sabe, que felicidade pode haver na cegueira da ignorância? Se ele sabe, então vive no medo de perder aquilo que ele não pode duvidar de que pode perder; de modo que um pavor constante o impede de ser feliz”.

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O poder e a riqueza

Deus quer que o homem governe todas as outras criaturas, mas o homem se torna ele próprio seu escravo. Os ricos trazem para si inimigos, e o poder, que geralmente advém a homens muito maus, não é em sua natureza bom.

Quanto à fama, mesmo que ela seja mundial, possuirá um alcance estreitíssimo, a terra sendo um mero grão de areia no universo. Quando o destino vira as suas costas para um homem, presta-lhe um verdadeiro serviço, ao permitir que encontre o caminho para a bondade.

“Nenhuma casa pode suportar por muito tempo os fortes ventos no topo de uma alta montanha; nem resistirá às grandes chuva se construída sobre areia fina. (...) Quem quer que busque a felicidade eterna deve fugir do perigoso esplendor desta terra média, e construir a casa de sua mente sobre a rocha firme da humildade”.

“És tu quem dá valor à tua riqueza, ou ela é valiosa por sua própria natureza?

A riqueza cobiçada torna o homem odioso tanto para Deus quanto para os homens.

A virtude torna o homem amada por Deus e por aqueles (poucos) que a valorizam.

Tudo o que é dado é mais precioso do que é guardado e acumulado.

“Por mais rico que sejas, jamais tua riqueza será suficiente, e jamais a tua doação irá satisfazer totalmente a pobreza dos outros, bem como sua cobiça.”

Como pode o homem admirar mais a pedra preciosa do que a outro homem?

“Humilhamo-nos demais quando amamos mais o que é sujeito a nós do que amamos a nós mesmos, ou do que amamos o Senhor, que nos criou e nos deu todas as coisas boas”.

O que é realmente necessário? Comida, bebida, vestuário e implementos que ajudem à pessoa a exercitar alguns poderes naturais.

“Por que lamentas por uma beleza que não é tua? Tu te aprazarias naquilo que não te diz respeito, e naquilo que nem criaste nem possuis?”

Buscar as bênçãos e a glória de uma natureza mais elevada nas coisas inferiores, que perecem, é uma ofensa ao Criador, que deseja que todos os homens sejam senhores de todas as outras criaturas. O ser humano que não alça o seu desejo à altura do conhecimento que lhe foi dado é inferior às bestas (como já dizia Aristóteles).

“A natureza das bestas é não terem conhecimento de si mesmas, mas no homem é uma deformidade não possuir o auto-conhecimento”.

A Filosofia canta novamente, sobre quão afortunado era o homem antes dos prazeres materiais, quando seguia o caminho estrito da natureza. Lamenta: quem foi o primeiro infeliz a descobrir as pedras preciosas sobre a terra? Riqueza e poder transformaram-se em honras.

"(...) um homem nunca conquista a virtude e a excelência por sua autoridade, mas em razão de sua virtude e excelência é que ele atinge autoridade e poder.”
Se o poder fosse bom por sua própria natureza, jamais estimularia o mal. Pelo contrário, o poder dado a um homem mau não o melhora, mas o revela em sua maldade e corrupção.

Nero mandou queimar Roma para comparar o brilho das chamas com os relatos da destruição de Tróia; condenou à morte todos os grandes sábios da cidade, e matou até mesmo a própria mãe. Ainda assim, seu poder diminuiu, e tanto mais ele se regojizava.

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As necessidades de um rei

A Mente argumenta que nunca deleitou-se com a cobiça e com o poder terreno, mas que desejou instrumentos e matéria para pôr em prática o seu trabalho, sua responsabilidade e autoridade. Um rei sem terra povoada, sem homens de guerra, sem homens de fé e sem homens trabalhadores não pode excerticar seus “poderes naturais”, seu talento especial (trecho provavelmente construído por Alfred).

A Filosofia diz que muitos desejam o poder, mas poucos são dignos dele; aquele que é sábio e busca com vigor o bem sabe o quão frágil e carente de bondade é tal poder.

Ademais, quão limitado esse dito poder! Que tolo esforço de um homem em empregar duramente os seus dias para embelezar uma fama restrita a tão pequeno lote, “uma vez que a parte do mundo no qual reside o homem é só um ponto comparada ao resto”. É impossível o nome de um homem chegar a todos da mesma forma. Mesmo que se deseje toda a fama, é muito difícil que vários homens gostem do mesmo objeto, que dirá da mesma pessoa.

Outro erro é a idéia de honra eterna, pois há honras que escapam ao registro, ou mesmo à ação natural do tempo e do esquecimento. De qualquer forma, mesmo dez mil anos não seriam nada comparados à eternidade, e quem busca o bem busca a eternidade (não pode haver comparação alguma entre finito e infinito).

“Isto [a fama de curto prazo, a mais comum] tu buscas conquistar negligenciando os poderes de tua razão, de teu entendimento, e de teu juízo; desejando ter como recompensa de tuas boas ações o bom relato de homens que nem conheces, uma recompensa que deverias buscar unicamente de Deus”.

Ademais, a alma é imortal, o corpo perece.

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A morte

Embora a mente deseje toda a glória terrena, a morte não está nem aí.

“Ela não dá atenção ao bom berço, mas engole tanto os poderosos quanto os inferiores, e assim coloca o grande e o pequeno no mesmo nível.”

Além disso, mesmo a fama falha com muita gente após a sua morte.

“Não penses que sou teimosa em minha luta contra a fortuna, eu mesma não a temo, pois freqüentemente acontece do destino não poder ajudar nem prejudicar um homem. Ela não merece nenhum louvor, pois por si mesma declara o seu vazio.”

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A adversidade é superior à prosperidade (felicidade mundana).

A felicidade verdadeira, constante e cumpridora de suas promessas é superior à falsa felicidade, que trai suas amizades e que prima pela inconstância. A felicidade verdadeira é libertadora de ilusões, a falsa é ilusória. A felicidade na adversidade é sóbria, é clara; a felicidade na prosperidade é precipitada, é ignorante e turva.

O que você daria para distingüir claramente amigos de inimigos?

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A Felicidade

Boécio admite estar muito confortado pelas palavras da Filosofia, mas gostaria de ouvir mais. No que consiste a verdadeira felicidade?

A Filosofia discute a natureza do bem supremo e mostra como todos os homens, mesmo os piores, desejam atingi-lo. Este bem não reside no poder, nem na riqueza, nem na fama, nem no bom berço, nem no prazer carnal; reside em Deus. Os homens podem participar na felicidade e assim atingir a divindade.

O Mal não tem existência, pois Deus, que pode fazer todas as coisas, não pode fazer o mal (o próprio ato de criação do mundo é uma bondade; maldade seria o nada).

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