quinta-feira, 3 de dezembro de 2009

A Consolação da Filosofia, por Boécio - III

Deus

A Filosofia exalta o Criador:

“Um criador existe sem dúvida alguma, e ele é o comandante dos céus e da terra e de todas as criaturas, visíveis e invisíveis. Ele é o Deus todo-poderoso.”

“O Deus todo-poderoso compeliu com o seu poder todas as suas criaturas, de modo que cada uma delas está em conflito com a outra, e ainda assim sustenta a outra, a fim de que elas não se desliguem entre si, mas voltem ao antigo curso para então começar novamente. Tamanha é a sua variação que as criaturas opostas conflitam umas com as outras e ao mesmo tempo preservam juntas a harmonia”.

Assim, um contrário não pode existir sem o outro e só pode ser medido pelo outro.

“Ó, quão feliz seria a humanidade se suas mentes fossem tão retas e firmemente estabelecidas, e tão ordenadas como é o restante da criação!”

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A busca pelo bem

Diz a Filosofia sobre a sua doutrina:

“É muito amarga à boca, e dói à garganta quando da primeira vez que você prova, mas vai ficando doce e chega muito suave ao estômago.”

O amargo antes do doce, a chuva antes do sol, assim é a verdadeira felicidade, as coisas boas da natureza sendo muito mais exaltadas quando precedidas das coisas desagradáveis.

“Todo mortal se aflige com diversas preocupações, e mesmo assim todos desejam chegar por muitos caminhos a um único fim; isto é, eles desejam por diversos meios atingir uma felicidade. Ora, esta não é outra além de Deus, o princípio e o fim de todo bem; Ele é a suma felicidade.”

Nada pode haver fora da felicidade suprema, que abarca todas as felicidades. Toda água sai do mar e a ele retorna.

A verdadeira felicidade não é um bem mundano, mas uma bênção divina, pois não é o destino que a produz, e sim Deus.

A Filosofia cita Epicuro, que classificava o prazer como o mais alto bem, porque, segundo ele, todas as formas de felicidade bajulam e encorajam a mente. Contudo, diz ela, o prazer por si mesmo bajula o corpo quase que de forma exclusiva.

Todos os homens desejam o bem, de uma forma ou de outra. Jamais cessam em seu querer, sempre buscam satisfazer todas as necessidades de modo a não mais possui-las, “mas só Deus não possui necessidades”. Deus não necessita nada, a não ser ele mesmo (como já afirmava Aristóteles).

O desejo em si não é mau. O que ocorre no homem é um erro no caminho até o desejo, que nunca é o mais reto, o mais verdadeiro.

Mas o ser humano pode se aperfeiçoar. Todos os seres se restringem às qualidades nas quais foram criados, exceto os homens e alguns anjos. Por mais que domestiquemos um leão, experimente dar-lhe sangue...

“Ó, vós, homens deste mundo, embora ajais como gado por vossa estupidez, mesmo assim podeis de alguma forma perceber, como num sonho, algo da sua origem, que é Deus”.

Embora não compreendamos as coisas totalmente, percebemos em toda busca pela felicidade um verdadeiro princípio e um verdadeiro fim.

“Tu és guiado por tua natureza em direção ao entendimento, mas é afastado dele por múltiplos erros”.

Boécio enfim admite: “Sei que falas a verdade. Eu era de fato miserável”.

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A cobiça é inextingüível

Quanto mais o homem possui, mais ele se curva ao desejo de possuir. A cobiça jamais extingüe a si mesma – ela só cresce, só se acumula, “pois o homem não pode tomar consigo desta terra nada mais do que a ela trouxe”.

O poder mundano nunca planta virtudes, e só colhe vícios. O poder alheio também eleva o vício pela inveja e pelo desprezo. Boécio não teria sido preso se emulasse o vício e a corrupção daqueles que concordaram com os terríveis atos e planos de Teodorico.

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As quatro virtudes

A Sabedoria, a mais sublime das virtudes, possui em si quatro outras virtudes: prudência, temperança, coragem e justiça, tornando os seus amantes sábios e valorosos, sóbrios, pacientes e justos.

A autoridade material não pode, pelo contrário, conceder virtude a ninguém.

A sabedoria vem de dentro; a autoridade, o poder, a fama, vêm de fora – não podem nunca pertencer a alguém, ao seu ser.

A Filosofia lembra Boécio das tantas histórias de reis que terminaram sem nada, e arremata, irônica:

“Certamente a riqueza é algo ótimo, a ponto de não poder preservar nem a si mesma nem ao seu senhor.”

Um rei pode dominar um povo inteiro, mas jamais os seus desejos. Um rei jamais vive em paz, o temor sempre o espreita. Um rei não é nada sem os seus servos.

Sobre a amizade baseada na riqueza: “O que é pior praga e maior dor a qualquer homem do que ter em sua companhia e proximidade um inimigo com a aparência de um amigo?”

“Quem tanto deseja ter poder deve antes lutar para ter poder sobre sua própria mente”.

“Ó, glória deste mundo! Ai de mim, por que os tolos com falsa voz te conclamam glória, quando tal não és?”

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A tolice do “bom berço”

Um homem é digno de louvor por si mesmo, não por seus pais, “pois todo mundo sabe que todos os homens vêm de um pai e uma mãe”.

“És tu mais justo pela justeza de outro?”

“A bondade e a nobre herança de um homem provém da mente e não da carne”.

O pai de todos os homens é Deus.

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Os prazeres criam dores

O desejo mau da luxúria disturba a mente de qualquer bom homem.

“Assim como a abelha deve morrer quando, em sua fúria, aferroa, deve também toda alma perecer depois da luxúria, a não ser que o homem retorne à virtude.”

A entrega à carne torna-a seu senhor e não seu servo, e é por isso o cúmulo do rebaixamento de um homem.

“Nem se tivesses o corpo maior do que o do elefante, ou se fosses mais forte do que o leão ou o touro, ou mais veloz do que o tigre, e o mais belo dos homens, ora, se procurasses a Sabedoria logo perceberias como todas estas qualidades não se comparam a uma única qualidade da alma.”

Assimo como a harmonia do Universo não pode ser comparada ao próprio Criador, a beleza corporal é tão frágil e fugaz como as flores.

Todo homem sabe onde procurar comida, onde procurar riquezas, mas é lamentável que não saiba onde procurar a verdadeira felicidade.

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A ignorância divide Deus

Boécio admite que a ignorância dos homens leva-os a dividir algo que é uno: Deus.

Segundo a Filosofia, o poder, a abundância, a glória, a dignidade e a bênção, só estão todas unidas em Deus. O homem comum idealiza, assim, somente uma parte de Deus, não compreende sua unidade. Portanto, nunca estará contente, porque “a riqueza suplica por poder, o poder suplica por honra, a honra suplica por glória”.

Que esperança de ser verdadeiramente feliz podemos ter então, pergunta Boécio.

Responde a Filosofia:

“Se qualquer homem desejar ter todas as felicidades em uma, desejará ter a mais elevada felicidade; mas ele não pode obtê-las em perfeição neste mundo.” (até mesmo porque sua vida aqui termina, é finita).

Portanto, nenhum homem deve esperar atingir a suma felicidade em sua vida presente. Por melhores que sejam, nenhuma dessas diferentes felicidades passa de uma mera impressão do Bem eterno.

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