domingo, 18 de outubro de 2009

A Vida Intelectual, por Sertillanges - III

Cap. 5 – O CAMPO DO TRABALHO

I – O estudo comparado

Segundo Sertillanges, não há um conselho preciso e restrito aqui, mas algumas dicas podem ser seguidas.

Por exemplo, nenhum campo do saber sobrevive por si mesmo, devemos ter noção disso. Precisamos passar por cada campo para corrigir gradualmente o centro do nosso saber, de modo que ele fique cada vez mais próximo da verdade. Lembremo-nos que as ciências nada mais são do que recortes do conhecimento pleno do real.

O intelectual deve manter o “ardor épico” de viajar pelas maravilhas do mundo do conhecimento. Homens geniais, grandiosos costumam ser universais – excelentes em um campo, competentes em outros. Organize os seus estudos, divida o tempo entre os diferentes assuntos e a sua ordem hierárquica de interesse. Em todos eles, vá direto ao essencial.

Assim como nenhuma área particular do conhecimento é auto-suficiente, também todas as áreas juntas não são auto-suficientes sem a rainha do conhecimento, a filosofia, nem o todo do conhecimento humano sem a sabedoria que brota da própria ciência divina, a teologia.

Não é por menos que Sertillanges se diz “assustado” com a configuração moderna do conhecimento, na qual a filosofia se afasta das ciências, sendo estas julgadas como filosofias em si mesmas.

As ciências sem a filosofia descoroam-se e perdem sua direção. As ciências e a filosofia sem a teologia descoroam-se ainda mais lamentavelmente, já que repudiam uma coroa divina, e perdem-se ainda mais irremediavelmente, pois a terra sem o céu não pode encontrar o caminho de sua órbita, nem as influências que lhe dão frutos.

Como diz Charles Dunan em Les Deux Idéalismes: “Para a filosofia moderna, os problemas transcendentais não existem. Mas o contrário é verdadeiro: se estes problemas existem, é a filosofia moderna que não existe.”

A ordem do espírito deve corresponder à ordem das coisas.

Portanto, existindo um Ser primeiro e uma Causa primeira, é lá que se completa e ilumina ultimamente o saber. Primeiramente como filósofo, por meio da razão, em seguida como teólogo, utilizando a luz que vem do alto, o homem de verdade deve centrar a sua investigação naquilo que é ponto de partida, regra e fim a título primeiro, naquilo que é tudo para tudo e para todos.

Hoje, que universais, que transcendentais? Resta apenas o caos. Uma summa, uma bíblia, uma arquitetura do saber não é mais possível. Cada homem que deseja conhecer deve construir “a sua summa pessoal”, introduzir ordem ao conhecimento através dos princípios que for descobrindo.

Recomenda Sertillanges que, para entender a ciência teológica, se estude a Summa Theologica de São Tomás de Aquino, tendo à mão o “Catecismo do Concílio de Trento”. Trata-se de um começo difícil, mas logo vem a recompensa. Recomenda também que se estude o latim, para facilitar a compreensão e o acesso a diferentes obras antigas. Deve-se aproveitar obras introdutórias ao pensamento tomista, e para isso Sertillanges indica o seu Saint Thomas d’Aquin e a obra Eléments de Philosophie de Jacques Maritain.

Um tutor receptivo e erudito seria uma ótima companhia nesta caminhada inicial, mas, ainda assim, Sertillanges propõe a solidão. O caminho é duro, sim, porém é totalmente trilhável, e a leitura de Tomás de Aquino será uma bela aula. Compare textos e pessagens, consulte compêndios e enciclopédias, escreva, organize e assente idéias.

.

II – O tomismo, esquema ideal do conhecimento

A necessidade de um “corpo diretivo” na percepção intelectiva do Universo. A perda desse sistema coerente, como já bem ressaltou Sertillanges, é um dos grandes males de nossa era.

A genialidade “não possui data”. As coisas eternas são coisas eternas.

Em comparação da água barrenta que nos servem, ele é manancial límpido. Superadas as primeiras dificuldades da maneira de expor arcaica, S. Tomás tranquiliza o espírito, estabelece-o na claridade plena e oferece-lhe quadro maleável e forte para as ulteriores aquisições. O tomismo é síntese. Nem por isso é ciência completa; mas a ciência completa pode apoiar-se nele como num poder de coordenação e de sobrelevação por assim dizer milagroso.

Como um sistema harmônico e sintético, o tomismo reconcilia sistemas adjacentes, indo ao encontro dos fatos. Supino na metafísica, na psicologia racional, na cosmologia, na ética, é como uma arca da salvação. Admite a falibilidade, é claro, pois não se perde na fé. “Tanto o conhecimento quanto a fé nele se convergem, porque tomou a sua posição entre eles como uma fortaleza no encontro de duas estradas.”

.

III – Nossa especialidade

Quanto mais se sabe, melhor, mas a mente enciclopédica é uma inimiga do conhecimento.

Conhecimento verdadeiro = scientia = profundezas das causas

Como diz Sertillanges, “devemos sempre sacrificar a extensão pela penetração”. Se em capítulos anteriores, ele professa alguma abrangência, é mais como forma de “preparação mental”. Quando esta formação básica é atingida, então é hora de cavar fundo.

Vencer uma dificuldade é bom; é preciso; mas a vida intelectual não deve ser uma acrobacia permanente.

Devemos trabalhar com gosto, sempre, e não se trabalha com gosto naquilo que não lhe desperta a curiosidade fundamental. Ademais, a nossa entrada em muitas áreas diferentes acaba nos horizontalizando, relaxando o nosso ímpeto vertical, o nosso caminho à verdade superior. Há também a impossibilidade física, biológica, de poder abarcar tudo.

Querendo ser legião, se esquece de ser uma pessoa; tentando ser um gigante, se diminui a própria estatura como homem.

.

IV – Os sacrifícios necessários

Sertillanges é bem direto: tudo nos atrai, nos interessa, mas a morte nos espera. Devemos nos submeter e descansar contentes diante das coisas que o tempo e a sabedoria nos negam. Mostremos a nossa humildade, respeitemos as nossas limitações. A virtude e a dignidade brotam desta postura. Meçamos a nós mesmos, meçamos as nossas tarefas. Não sejamos desertores de nós mesmos ao querermos substituir todos os outros.

O homem semi-informado não é o homem que conhece só a metade das coisas, mas o homem que sabe das coisas somente pela metade.

.

Cap. 6 – O ESPÍRITO DO TRABALHO

I – O ardor da investigação

Antes de tudo, o espírito da determinação deve estar presente, porque estabelece a mente ativa.

A mente é como uma criança cujos lábios nunca cessam em seus porquês. Nossas alma não envelhece, ela sempre cresce em relação à verdade ela é sempre uma criança.

Indolência e preguiça são os grandes inimigos do conhecimento. Como exclamou certa vez Leonardo Da Vinci, “ó, Deus, tu vendes aos homens todas as coisas boas pelo preço do esforço”.

A mente é incrivelmente plástica – pode sempre voar mais alto. Nunca se entregue aos bons resultados e ao reconhecimento alheio. Prossiga, insista, avance em direção à densa verdade. Mantenha o espírito do conquistador, o espírito do herói em sua odisséia. Seja cada vitória é como um ensaio para a próxima, e a derrota o seja apenas na morte.

.

II – A concentração

Este espírito de zelo deve conciliar-se com a concentração recomendada por todos os homens de pensamento profundo. Nada mais funesto do que a dispersão. Difundir a luz é enfraquecê-la em proporções geometricamente crescentes. Pelo contrário, concentrando-a pela interposição duma lupa, o que era aquecido pela livre irradiação arde agora no foco onde o ardor se ateia.

Deixe a sua mente virar uma lupa. Não por acaso é este o símbolo da investigação, da busca. Concentre todos os seus poderes n’um só ponto. Cavar sempre o mesmo buraco nos leva cada vez mais fundo. O trabalho inspirado, a verdadeira criação, depende de poucos elementos fundamentais às suas configurações, basta que sejam bem dirigidos.

.

III – A submissão à verdade

Acima da disciplina do trabalho, a disciplina da verdade. Toda descoberta é o resultado de simpatia entre o “Deus interior” e o “Deus universal”, uma mente humilde para um universo ativo. Segundo Sertillanges, nossa inspiração utiliza mais o nosso inconsciente do que a nossa iniciativa. Com o intuito de descobrir a verdade, não olhamos para a nossas mente, mas através dela. Não façamos como os filósofos modernos, não confundamos os meios com os fins. Nossa simpatia com a verdade deve ser como um permanente “êxtase pensante”, afinal só a verdade existe, só o ser é.

Não pensemos de onde é que vem a idéia, mas qual a essência dela. Não importa se Platão, se Aristóteles, se Leibniz... só a verdade é que importa. Treinemos nossas mentes a esse respeito.

.

IV – Ampliando a percepção

Por mais restrito que seja o seu momento de concentração, tanto o sujeito quanto o objeto tendem para o universal. Há uma síntese entre o abrangente e o detalhismo (perda de senso de unidade) que devemos encontrar. Ao mantermos o estado de meditação, coadunando pensamento e sentimento, erguemos nossa mente ao alto. E Sertillanges dá um conselho muito importante, principalmente nos tempos de hoje:

Fuja das mentes que não podem nunca se elevar acima de suas regras acadêmicas, que são escravas de seu trabalho ao invés de fazê-lo na plenitude da luz.

.

V – O sentido do mistério

Mesmo quando a verdade nos der um belo sorriso, nosso sentido de mistério e perplexão deve permanecer.

Os que pensam que entendem tudo provam por isso mesmo que não captaram nada.

Toda resposta é provisória, toda pergunta a Deus só Deus pode responder. Como diz Claude Bernard, “para entender uma única coisa completamente, teríamos que entender todas as coisas”. São Tomás ao fim de sua vida chegou a declarar, em um famoso epísodio, que não podia mais escrever, afirmando: “tudo o que escrevi me parece palha perto do que vi”.

Não alimentemos a presunção de desejar que chegue depressa este elevado desespero; ele é uma recompensa, é o segredo precursor do grande grito que faz vibrar a alma inundada de luz.

A luz lá no fundo nos estimula para prosseguirmos. A luz que projeta as figuras na caverna nos incita a nos libertarmos das correntes e vermos o sol em sua plenitude. O mistério é essa luz que aos nossos olhos sempre redunda em sombras.

.

No próximo post, seguiremos o resumo sistemático deste importante livro.

Nenhum comentário:

Postar um comentário