domingo, 25 de outubro de 2009

A Vida Intelectual, por Sertillanges - V

CAP. 8 – TRABALHO CRIATIVO

I – Escrever

Agora é a hora de produzir resultados. Como diz Sertillanges, não se pode estar sempre aprendendo e pretendendo estar pronto; uma hora os frutos precisam aparecer. Ademais, a aprendizagem e a preparação são processos indissociáveis da produção. Você deve escrever por tuda a sua vida intelectual.

Segundo o autor, nós escrevemos para:

* Ver claramente o que se pensa;

* dar definição aos próprios pensamentos;

* estimular a atenção e manter-se alerta;

* começar uma linha investigativa e solidificá-la;

* encorajar-se, vislumbrando resultados;

* formar um estilo próprio e adquirir a arte de escritor.


Quando escrever o suficiente para divulgar, julgue o seu trabalho e então o publique. Alcemos vôo o mais breve possível, recomenda Sertillanges. O contato com o público o incentivará a melhorar, o elogio merecido o estimulará, e a crítica irá testar o seu trabalho e o seu vigor espiritual. Progredir, evoluir, sem parar.

Père Gratry insiste que devemos sempre meditar com a caneta na mão e sugere pessoalmente que dediquemos a hora tranqüila da manhã a este contato da mente consigo mesma. “Um bom começo é a metade”, já dizia Aristóteles.

Quem não produz, habitua-se à passividade; o medo de orgulho – porque o orgulho também gera o medo – ou a timidez aumentam mais e mais; recuamos, cansamo-nos de esperar, tornamo-nos improdutivos.

Diz ainda Sertillanges: “o silêncio é uma diminuição da personalidade”, pois “o estilo é o homem”, se forma com ele. Acima de tudo, escreva de forma verdadeira, sincera, honesta e justa consigo mesmo. Una a verdade à sua individualidade e à simplicidade, analogamente ao que ocorre no Ser. Como falava Pascal, “a eloqüência verdadeiramente espontânea e inspirada zomba da eloqüência baseada em regras de retórica”.

Conforme Sertillanges, o segredo de escrever é estudar as coisas fervorosamente até que elas falem com você e determinem a sua própria expressão. O clichê é um ornamento, uma frivolidade, uma verdade que se perdeu no ar. Paul Valéry dizia que o uso automático das palavras é o que “mata” a língua; ficamos vivos quando usamos a sintaxe com a completa consciência do que estamos fazendo.

Nosso estilo é nossa “feição”, a nossa identidade.

O estilo, que convém a um pensamento, é como o corpo que pertence à alma, como a planta que provém da semente: tem arquitetura peculiar. Imitar é alienar o pensamento; escrever sem caráter é declará-lo vago ou pueril.

Mas ressalta ainda Sertillanges: devemos ser originais sem buscar a originalidade. O embelezamento, a artificialidade, é uma ofensa à verdade, porque “não há embelezamentos no real, e sim necessidades orgânicas”. Não que na natureza não haja brilho, mas é que o brilho por si só é orgânico. O verdadeiro estilo na mão de um artista competente imita as criações da natureza. Observemos a natureza, então, esta criação supinamente maravilhosa de Deus!

Sejamos econômicos, objetivos, retos. A substância é superior à forma. Como dizia o grande Michelagelo, “o belo é a remoção de todo o supérfluo”.

Não seja escravos da moda. Dá água de nascente, não drogas de farmácia. Muitos escritores, hoje, criam seus sistemas: ora, um sistema é algo do artificial e o artificial ofende a beleza.

Acima de tudo, busque ser compreendido por todos. Só duas mentes parecem no mundo tender à simplicidade: a mente limitada e a mente do gênio.

.

II – Desapegar-se de si e do mundo

Todo trabalho criativo requer o desapego. Nossa personalidade deve ser posta de lado, e o mundo esquecido – aspiremos às alturas.

Já vimos que o homem é por inteiro e em si necessário, mas o homem que busca a verdade não deve ser uma criatura da paixão, da vaidade, da ambição. Em geral todos tendemos à vaidade, de fato, mas nossas obras não devem se alimentar dela. A inspiração é incompatível com o desejo egoísta. Querer algo para si é pôr a verdade de lado. Devemos servir à verdade, e não usá-la.

Você está pronto para morrer pela verdade? Tudo o que um verdadeiro amante da verdade escreve, tudo o que ele pensa, deve ser como o sinal que São Pedro mártir traçou com o sangue de sua ferida enquanto morria: credo.

Reconhecermos, acima de tudo, que não somos capazes da ciência universal. Esta é, afinal, a mensagem central da obra de Sertillanges: louvemos a humildade e a sinceridade intelectual, não nos enganemos a nós mesmos; a verdade é uma só.

Não devemos jamais temer a reação do público, as opiniões contrárias. Não deve o intelectual sincero buscar ser “amigo de todos” – mais uma vez: seu compromisso é com a verdade.

Ora, o pensamento não será a sua obra, se o cuidado de agradar e de se adaptar escravizar a sua pena. O público então irá pensar por você, quando você é que deveria pensar por ele.

Tenha o espírito sincero e inocente de uma criança, guardando a experiência e o conhecimento de um adulto devotado à verdade.

.

III – Constância, paciência e perseverança

Não ouse imaginar que a vida estudiosa seja uma vida fácil. Ser um intelectual o tempo inteiro exige dedicação plena, profunda, constante. Devemos respirar essa vida. Em nosso cotidiano, costumamos nos perder em frivolidades, em desculpas para a preguiça, para a inação, para a não-entrega. Encontramos uma palavra no dicionário, e então nos referimos a outra, e a mais outra, e a curiosidade nos leva a ir a outro verbete, e outro, e assim nos desligamos da nossa anterior concentração (o quão comum é esse tipo de atitude hoje em dia, com a ajuda da internet, não? Entramos em um site, e então clicamos em sucessivos links, e vamos abrindo diversas janelas simultâneas por pura preguiça mascarada de pretensa curiosidade).

Evitemos nos perder em efemeridades, quaisquer delas, recomenda Sertillanges. Superemos a depressão do vazio que tantas vezes nos acomete. Corremos perigo o tempo todo de acomodarmos a mente – ora, o mundo é uma oferta a isso.

Mas ressalta; “dar um tempo” no trabalho e pensar em outros assuntos importantes não é um ato preguiçoso. Lembremos que a inspiração pode vir nos momentos mais fortuitos e inesperados.

De todo modo, rejeite vigorosamente qualquer interrupção. Não é necessário lançar mão de estimulantes; uma boa caminhada, um alongamento, um exercício de respiração, podem nos manter ativos.

Tenha coragem. Pense no seu trabalho como um plano para conquistar a sua liberdade. O estudo é como uma caminhada transcendental – não se entregue no primeiro sinal de fadiga. Mergulhe na atmosfera, viva isso, respire isso. Tenha Platão como seu amigo e confidente, Aristóteles como o vizinho de porta.

Não dê força às circunstâncias. Asseverava Michelangelo: “as obras realizadas à custa de um grande esforço devem dar a impressão de terem sido fáceis de conceber e executar”.

Ora, o trabalho intelectual também requer heroísmo, como nas batalhas. Tenha paciência, cadência, evite a pressa e a prematuridade. Tudo vem no momento certo.

No reino da mente, a quietude é melhor do que a rapidez.

(...) Uma vida bem preenchida é longa.

(...) Trabalhe com um espírito de eternidade.

Ao cristão, diz Sertillanges para respeitar a Providência divina. A excitação febril leva à escravidão espiritual. Ser intelectual é perseverar, absolutamente. Não se entregue ao humor da hora, a modas, a circunstâncias.

Que importa o tempo quando se está com Deus?

(...) O homem de caráter que trabalhou insistentemente por toda uma longa vida pode deixar-se cair como o sol, em uma morte tranqüila e esplêndida.

.

IV – Fazer tudo bem feito e até o fim

Além de exercer as virtudes que lhe são próprias, deve o verdadeiro intelectual pensar na perfeição e na completude do seu trabalho.

Não completar uma obra é destruí-la.

Quando decidir começar algo, não desista. Lembre-se que o ser – verdade, infinitude e bem – é perfeito. Como diz Sertillanges, “ter vocação é estar obrigado à perfeição”.

Ponha seu esboço de lado, descanse os olhos e então observe-o de a uma certa distância. Se não aprová-lo, comece de novo. Do contrário, faça uma crítica minuciosa e melhore o máximo que conseguir, até poder dizer a si mesmo que se esgotou a sua capacidade sobre esta obra. Não se importe com o tamanho dela.

Busque infundir a qualidade em seu trabalho de forma imediata; nunca deixe para aperfeiçoar depois, pois isso é um sussurro da preguiça ao pé do ouvido. Uma obra deve ser como uma pincelada, como um fluxo único, portanto, coloque o seu melhor no momento da criação.

.

V – Não ir além das próprias forças

Altiora te ne quaesieris (não procures o que está acima de ti)
— Tomás de Aquino

Não force o seu destino. A vocação lança mão de nossos recursos – não os cria. Busque conhecer onde se encontra a sua vocação, de que sacrifício você é capaz, o que é que você pode escrever, a que público que você pode servir, e só então se entregue com paixão.

Toda obra é grande quando o é na medida certa.

Esta é a grande e milenar sabedoria, conhecer a si mesmo.

.

Cap. 9 – O TRABALHADOR E O HOMEM

I – Manter o contato com a vida

Depois de tudo isso, comenta Sertillanges, parece até ironia dizer: liberte a sua alma, mantenha-se livre, mas é isso que se deve fazer.

O que mais importa na vida não é o conhecimento, mas o caráter.

O que conhecemos é só o começo; o homem é a obra terminada. Não somos nem só cabeça nem só membros, somos o coração, centro de equilíbrio de nossa concretude. Assim como o filósofo deve ser um tanto de poeta, o artesão deve ser um tanto de filósofo, e por aí vai.

Mantenhamos a mente aberta, não estreitemos os nossos objetivos finais. Não devemos ser escravos do trabalho nem de peculiaridades. Sertillanges nos diz para conciliarmos nossas vidas intelectuais com outros interesses que contribuam com a sua formação, com seu poder criativo.

Sabemos como uma bela música pode nos inspirar; ela desperta a alma com a sua harmonia e emula a ordem do mundo. Ora, o nosso pensamento não é uma música isolada, mas uma voz em uma orquestra. Tenhamos cuidado em não virarmos nossas costas para o resto da vida quando decidirmos pela vocação do estudo.

Recuse-se a ser um cérebro fora do seu corpo.

.

II – Saber como relaxar

Os limites no trabalho reforçam o seu vigor, ao invés de o embaraçarem.

A intemperança é um pecado porque ela nos destrói; e nós temos a obrigação de usar a vida com sabedoria porque temos a obrigação de viver.

Amar a verdade, não o prazer decorrente dela, este é um grande e fundamental princípio. Não se ama o amor em si, mas o seu objeto, e isto Platão já nos ensinava.

Relaxar é essencial como a higiene. Devemos mergulhar de volta na natureza para tomarmos fôlego. Bacon é quem dizia que “gastar muito tempo em estudos é ser preguiçoso”. Descanse, organize-se e prepare-se para as horas de mais intenso trabalho. Melhor trabalhar energicamente e então descansar bem, do que ir diluindo o seu trabalho, emperrando-o com diferentes sintomas.

Seja divertido, não deixe de ser uma boa companhia para os outros. Ninguém aguenta um homem melancólio, já diziam Aristóteles e Tomás de Aquino. O verdadeiro descanso é a alegria, claro, sem os excessos, por isso os descansos curtos e freqüentes são o ideal. Sertillanges julga que o campo proporcione maravilhas nessas horas, quando nossa alma se eleva a um plano muito alto em seu contato com a natureza, não permitindo que percamos o realismo em nossas concepções. “O imperativo categórico com certeza não foi concebido em um prado, que dirá a famosa moral aritmética de Bentham”, conclui ele, com bom humor.

.

III – Aceitar nossas provações

A salvação só vem pela cruz, reitera o dominicano Sertillanges.

A provação do ideal que parece não se aproximar.

A provação dos tolos que não entendem uma palavra sua e se escandalizam.

A provação dos invejosos.

A provação dos bons que hesitam.

A provação dos medíocres.

Cita Sertillanges a grande passagem em João, 15,19, mais do que simbólica: “Se fôsseis do mundo, o mundo amaria o que era seu; mas, porque não sois do mundo, antes eu vos escolhi do mundo, por isso é que o mundo vos odeia.”

O trabalho é em si um remédio para os problemas tanto da alma quanto do corpo, contra a ansiedade e a preguiça. Com oração e trabalho, tudo pode ser superado, ressalta Sertillanges. “Só encontro uma resposta a todas as críticas,” dizia Emerson, “entregar-me de novo ao trabalho”. O relaxamento, discutido no capítulo anterior, também ajuda a aliviar esse sofrimento.

A verdadeira força espiritual é intensificada na perseguição.

Recolha as pedras que lhe forem atiradas e construa a sua casa. De toda forma, jamais esqueça: a verdade não defende a si mesma, a verdade é. Não confie plenamente em seus juízos e corrija os seus erros quando eles de fato aparecerem.

O que você deseja? A glória vã? O lucro? Então você não passa de um pseudo-intelectual. A verdade? Ela é eterna. Não se deve transformar a eternidade em uma utilidade.

.

IV – Saborear as alegrias

Alegremo-nos mesmo nas nossas aflições e contradições. A tristeza e a dúvida matam a inspiração se a elas nos entregarmos.

A recompensa pelo trabalho é tê-lo produzido; a recompensa pelo esforço é ter crescido através dele.

Diz Sertillanges que, emulando uma qualidade dos santos, o verdadeiro intelectual parece escapar dos efeitos da idade, que para tantos homens equivalem à morte. No fim, santidade e real intelectualidade parecem partilhar de uma mesma essência.

A verdade é a santidade da mente.

V – Esperando pelos frutos

“Seguindo este caminho”, diz S.Tomás ao discípulo, “produzirás, na vinha do Senhor, folhas e frutos úteis todo o tempo da vida. Praticando estes conselhos, alcançarás o que desejas. Adeus”

O trabalho cria por si mesmo o seu instrumento – nos faz superar as nossas dificuldades naturais. Os resultados às vezes demoram, mas chegam. Tenha fé em si mesmo e seja fiel à sua vocação. Muitas obras e vidas são melhores do que as suas serão, mas ninguém é melhor para você do que você mesmo. Gostaríamos que nossa chama queimasse sem fumaças ou cinzas, mas tal não é possível, e é nossa primeira obrigação saber disso.

Depois, acrescente e repita com convicção: “Se fizer isso, produzirá frutos e alcançará o que deseja.” Adeus.

.

Adeus, Sertillanges, e obrigado por tudo.

.

.

No próximo domingo, começaremos uma série de posts com o resumo detalhado da magistral e exortativa obra de Boécio: A Consolação da Filosofia.

Até mais.

Nenhum comentário:

Postar um comentário