quarta-feira, 21 de outubro de 2009

A Vida Intelectual, por Sertillanges - IV

Cap. 7 – A preparação do trabalho

A LEITURA

I – Não ler muito

Como diz Tomás de Aquino, devemos ir ao mar pelos regatos, e não diretamente. A nossa necessidade primordial é saber como ler e como utilizar a leitura que fazemos.

1ª regra: não ler muito. Sertillanges não recomenda aqui a leitura limitada, mas a leitura sem a “paixão” tão proclamada por aí. Como toda paixão, ela monopoliza a alma, a perturba e exaure suas forças. Devemos ler com inteligência, não com paixão. Ordem, reflexão e concentração levando à criação.

O “leitor apaixonado” sobrecarrega olhos e mente, enquanto o leitor inteligente os preserva com carinho e com um objetivo. De todo modo, afirma Sertillanges:

Para avançar, é preciso remar; nenhuma corrente, por si só, o conduzirá aonde quer chegar. Abra, por si próprio, o caminho e não enverede por todas as sendas que lhe oferecerem.

Cortar principalmente a leitura menos sólida e menos séria. Recomenda Sertillanges que tentemos não envenenar nossas mentes com romances. De tempos em tempos, você pode ler uma boa ficção, mas, lembre-se, trata-se de uma concessão que você faz, pois muita ficção acaba perturbando a mente sem renová-la, confundindo nossos pensamentos.

Evitar ferrenhamente os jornais.

Convém saber o que os jornais contêm, mas eles contêm tão pouco; e seria tão fácil estar ciente desse conteúdo sem se entregar a intermináveis momentos de leitura preguiçosa!

Um intelectual sério deve se satisfazer com crônicas periódicas e só se dirigir aos jornais quando dos graves acontecimentos ou por artigos memoráveis (e olhe lá! Depende do jornal, escolha-o bem)

Como bem arremata Sertillanges: “nunca leia quando você pode refletir”.

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II – Escolher bem

Devemos não só escolher bem os livros como nos livros. Não confie em propagandas, títulos e artes chamativas. Tenha bons conselheiros a respeito da bibliografia. Vá direto à fonte para satisfazer a sua sede.

Procure se associar somente com os grandes pensadores, desenvolvendo o seu critério. Leia somente aqueles livros nos quais as idéias principais estão expressas em primeira mão – não há tantos assim, acredite (Mário Ferreira dos Santos já dizia que os maiores responsáveis pelos grandes erros da filosofia foram e continuam sendo os comentadores de segunda, terceira e quarta mãos, que com o tempo desfiguram as obras principais, facilitando as más interpretações). Os livros em geral repetem muito uns aos outros – ou se contradizem, e isso é também uma forma de repetição. Especialmente ao estudar a história da filosofia, ficamos sabendo que as descobertas no pensamento são de fato muito raras, e que as conclamadas “revoluções do saber humano” não passam de revisões de antigos debates.

Atenha-se ao fundamento, ao fundo permanente de idéias, não a individualidades. Claro, não há como negligenciar certas coisas; às vezes as descobertas vêm por meios enredados e lamacentos, mas procure evitá-los.

Ame os livros eternos que expressam verdades eternas.

Quando abrir o livro, tome o autor como um guia. Mas, não se esqueça, alerta Sertillanges: você é um homem livre e responsável e deve manter o domínio de sua própria alma. É o homem quem escreve livros, e o homem é por natureza imperfeito e corruptível. Filtre bem o que você lê. Acredite em Deus como segurança, porque Ele ama a Verdade e o Bem.

De qualquer forma, o valor de um livro é parte do seu próprio valor e do que você pode tirar dele. Leibniz tirou proveito de tudo; São Tomás formulou um grande número de pensamentos a partir da leitura dos heréticos e dos paganizadores de seu tempo.

Um homem inteligente encontra inteligência em toda parte.

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III – Quatro tipos de leitura

1) Leitura fundamental --> formação própria
Requisito: obediência.

2) Leitura de ocasião --> objetivo em particular
Requisito: domínio mental

3) Leitura estimulante --> adquirir ânimo pelo trabalho e pela prática do bem
Requisito: determinação

4) Leitura recreativa --> relaxamento
Requisito: liberdade


Todo começo deve prezar pela reverência aos mestres do pensamento. Você é um aluno, “você deve crer no seu mestre”, diz Tomás, repetindo Aristóteles. Não uma obediência cega, mas nobre. Só se aprende a comandar depois de obedecer, e o domínio do pensamento só é conquistado através da disciplina.

A escolha de um “pai intelectual” é uma coisa muito séria.

Sertillanges, como já ficou bem claro, costuma aconselhar São Tomás de Aquino como este guia e este pai para as doutrinas superiores, sem, contudo, limitar-se a ele. A obediência deve ser dirigida não a um autor, mas à verdade – sem jamais erguer-se contra aquele por particularidades. Siga os passos do seu mestre, não seja o seu próprio mestre antes que o tempo chegue e que você possa trilhar o caminho por si mesmo.

Quem lê visando um determinado trabalho tem a sua mente dominada pelo que planeja fazer; não mergulha na água, retira algo dela; mantém-se na margem, preservando a liberdade de seus movimentos.

O fascínio da leitura não pode interferir no propósito que a justifica.

Com relação à leitura estimulante, para Sertillanges irá depender das próprias experiências do leitor. O que ajudou antes irá ajudar novamente. Mantenha sempre ao alcance as obras que lhe revigoram para seguir a longa caminhada. Saiba perceber o que é que lhe auxilia neste sentido, quais são os seus “remédios” para a doença d’alma, sem hesitar em retornar a eles até que tenham perdido todo o efeito.

As escolhas para a leitura visando o puro relaxamento são bem menos importantes, embora seja importante entender que certos tipos de leitura não são recreativas o suficiente, enquanto outras o são demais (divertir em francês, dévoyer, no sentido etimológico significa “desviar do caminho”). (Sertillanges nos conta que conheceu um homem que descansara de uma trabalhosa obra lendo a monumental History of Greek Philosophy de Zeller. Era uma distração, mas não o suficiente para desviá-lo)

Somente uma coisa, de acordo com São Tomás, nos dá o verdadeiro repouso: a alegria. Portanto, procurar a distração em algo entendiante seria uma completa perda de tempo e de energia. Leia algo que goste, que não o excite muito a ponto de prejudicar o seu labor intelectual. Tenha inteligência para ler, mesmo nessas horas, ajudando a si mesmo “a desenvolver sua personalidade, a adornar a sua mente, a ser um homem”.

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IV – O contato com os escritores geniais

O convívio com os gênios é uma das graças que Deus concede a pensadores humildes.

Trata-se de um privilégio que pouco damos valor, mas que multiplica nossa alegria e amplia o nosso mundo, tornando-o um lugar mais nobre e melhor para se viver. Segundo Sertillanges, renova-se assim “a glória de ser um homem, de ter a sua mente aberta aos mesmos horizontes que os maiores, de viver nas alturas e de fundar com os seus semelhantes, com os seus inspiradores, uma sociedade em Deus”. Como disse Thérèse von Brunswick ao falar de Beethoven: “logo após os gênios, vêm aqueles capazes de reconhecer seu valor”.

Ao nos aproximarmos de gênios, subimos a outro plano. A sua superioridade por si só já nos beneficia. Como ilustração do que é a genialidade expressa de forma simples e sublime, Sertillanges sugere ouvir os prelúdios de Bach, cuja inspiração nos leva por um breve momento aos céus, onde “ficar e mover-se livremente seria o nosso sonho”.

(...) que bênção é poder elevar-se tão acima das futilidades! Isso nos afina e nos ajuda a fazer a justa apreciação dos fogos de artíficio pueris que tantas vezes formam o produto dos entretenimentos intelectuais.

“A mente humana não pode ir muito longe”, escreveu Rodin, “exceto com esta condição: que o pensamento do indivíduo seja somado paciente e silenciosamente ao pensamento de gerações.”

O gênio nos apresenta, abre as cortinas para a realidade que está lá, óbvia, e que nós não vemos. Através dele, o ser é que se comunica conosco, e não nossas próprias mentes. O gênio simplifica as coisas. Eles não refletem só sobre o seu tempo, mas sobre a humanidade.

A existência do gênio prova o erro dos pensadores maliciosos.

Um erro como o dos judeus que olharam para Jesus e disseram: “pode algo de bom vir de Nazaré?” Sim, algo de bom pode vir do nosso pobre mundo, pois que dele veio um Platão.

Grandes homens também erram, é claro, e com eles também temos a aprender. Não são erros vulgares, mas excessos – mesmo em seus enganos, há no gênio a profundidade e agudez de visão. Segundo São Tomás, nós devemos tudo à verdade, e assim nós devemos àqueles que erraram e que pelo seu erro desenvolveram a nossa mente; é através deles que trabalha a Providência. A Igreja deve às heresias, a Filosofia deve aos sofismas. Como diz Sertillanges, “quem tropeça sem cair dá um passo maior adiante.”

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V – Reconciliar ao invés de acentuar opostos

Lembremos: não nos interessam pensamentos, mas verdades.Não disputas, mas obras e o que delas restar. É futil insistir em diferenças quando tão frutífera é a busca de pontos de contato.

São Tomás, por exemplo, era um grande aristotélico, mas inclinava-se para Platão; sem ser agostiniano, seguido se alimentava da doutrina de Santo Agostinho. Disse que Averroes era um corruptor do peripatetismo, e mesmo assim também o chamava de “sublime espírito” (praeclarum ingenium), citando-o diversas vezes.

Assim, não busque só qualidades, mas a verdade e a penetração filosófica. A crítica constante estreita a inteligência e o afasta da verdade. A fofoca também existe no meio intelectual, mesmo na Teologia! Eleve-se acima dela com toda sua alma. Esqueça a ambição por notoriedade, o embate de partidos, o espírito da discórdia, o estímulo artificial da inteligência. A verdade, nada menos do que ela.

Lancemos pontes, não cavemos fossos entre as suas doutrinas.

As colunas do prédio estão distantes, mas um arco as une no topo.

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VI – Assimilando a leitura e vivendo por ela

Nós comemos para viver, enriquecemos para usar a riqueza, e lemos para pensar. Sertillanges nos alerta para evitarmos atingir o automatismo intelectual. Mesmo sem ler demais, podemos acabar mergulhando numa corrente de indolência.

Um homem que sempre ouve pode nunca aprender.

Apenas obedecer não basta, devemos ter o espírito ativo. Conforme bem diz Sertillanges, “a leitura nos mostra a verdade; temos que torná-la nossa.” Boécio já afirmava que “pela doutrina, a mente do homem só é estimulada a saber”, e não a investigar.

Esse infinito mar de sinais e fenômenos que temos diante de nós não produz conhecimento por si só; o nosso espírito operando sobre eles é que o produz. O pensamento em si é incomunicável de homem para homem. Aprendemos não com olhos e ouvidos, mas com a alma, e o ensino nos dá as ferramentas para fazê-la operar. A mente é iluminada pela própria luz, e, em última análise, pela luz de Deus, que é o nosso único e absoluto mestre.

A origem do conhecimento não está nos livros, está na realidade e em nosso pensamento. Livros são postes de sinalização; a estrada é mais antiga, e ninguém pode fazer a jornada para a verdade por nós mesmos.

Sertillange tece uma bela metáfora: juntar a lenha é essencial, mas sem a faísca não há fogo. É só através do nosso próprio esforço que adquirimos conhecimento. Intelectualmente, “nascemos velhos e devemos tentar morrer jovens”. Precisamos tentar ser nós mesmos, e não há forma mais elevada de se buscar isso do que através do trabalho intelectual.

Termina o capítulo com uma citação de Schopenhauer: “Quando só se fala do que se lê, ninguém nos lê”.

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ORGANIZANDO A MEMÓRIA

I – Que coisas devem ser retidas

A capacidade da memória varia muito nos grandes homens, e nem podemos classificá-los por tal capacidade, mas é inegável o valor de uma boa memória. Aquino nos diz para acumularmos tudo que pudermos de valioso, lembrando que “a comida excessiva é um veneno”.

Não vivemos pela memória, mas a usamos para viver. Guarde tudo o que contribui para o seu propósito intelectual. Quanto ao resto, deixe para o esquecimento.

Pascal tinha o melhor tipo de memória – a que retém só o que deseja reter. Ora, a felicidade para Santo Agostinho era “desejar nada além do bem e ter tudo o que se deseja”.

Se não for bom de memória, não se apavore. Use o que lhe foi dado, e não o que lhe falta! Ademais, a memória, como a própria mente, pode ser exercitada, especializada. Para os católicos, Sertillanges afirma que devem todos “santificar sua memória”, decorando vários salmos e repetindo-os durante o dia.

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II – Em que ordem devem ser retidas

A memória deve escapar do caos, deve ter hierarquia. Procure sempre por conexões e condições disso e daquilo, como se a sua mente fosse um mundo aguardando pela investigação científica.

Uma mente bem organizada é como uma árvore genealógica.

De nada adianta uma miríade de noções sem o entendimento de noções primordiais. Concentre-se na memorização das idéias centrais a cada área do seu saber, deixando as particularidades em segundo plano. Quando novas idéias entrarem na sua mente, agirão retroativamente, avaliando quais os princípios ali são subjacentes a elas. Como diz Sertillanges, “Há, em cada matéria, certas ideias dominantes, que são chaves para tudo”.

Hierarquia + princípios guiadores = a melhor memória e o melhor estudo

A memória é o mecanismo de adaptação do pensamento ao cosmos.

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III – Como podem ser retidas

São Tomás propõe:

1) Ordenar o que se quer reter

2) Aplicar a isso o espírito

3) Meditar sobre isso com freqüência

4) Ao desejar reter algo, tomar a cadeia de conexões daquela idéia por uma ponta, que ela trará o resto consigo.

Assim como Cícero, ele ainda sugere que se conecte a memória das coisas intelectuais com a das coisas sensíveis, pois estas são o objeto próprio do intelecto e pertencem à memória por si mesmas. Faça analogias, metáforas, estabeleça pontos de contato muito claros entre sensível e inteligível. Busque conexões, genealogias, razões ordenativas. Fundamente-se no método silogístico clássico, onde as premissas levam à conclusão. Ao tentar se recordar de algo, pense em todas as circunstâncias ligadas aquele fato que fora retido, como um detetive da sua própria mente.

Acima de tudo, procure manter a atenção, a concentração, a vontade de saber, o espírito intelectual de que este livro tanto fala. Reflita sobre o que é para ser lembrado, pondere, reanalise, circule a idéia na sua mente.

A mente agitada se opõe a estas operações, e, portanto, uma vida pacífica, livre de paixões, é necessária para o bom uso da memória assim como de todas as funções intelectuais.

A memória, enfim, não se trata de quantidade, mas de qualidade, ordem e habilidade no seu uso.

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AS NOTAS

I – Como tomar notas

Leitura + memória + anotações = obras

As anotações são como memórias em papel e se transformam em um grande suplemento para o nosso trabalho. Se fôssemos confiar somente na memória mental, o resultado final seria desastroso, afirma Sertillanges. A memória é um servo não muito confiável per se, como já vimos – ela perde as coisas, ou as enterra, e às vezes não responde chamados....

Lembrar a coisa certa no momento certo exigiria do intelectual um auto-domínio sobre-humano. Assim, livros de anotações e cadernos serão de grande ajuda, como um banco para depositar e retirar a qualquer hora.

Há dois tipos de anotações, ressalta Sertillanges: as mais descompromissadas, e as com objetivos bem delineados para o trabalho mais à frente. Ele nos recomenda que evitemos o excesso com ambos os tipos de notas; muito material disponível pode acabar nos atrapalhando depois, desviando o nosso foco e até perdendo o seu uso.

Sertillanges sugere esperar um pouco durante a leitura antes de sair anotando:

Com calma e à distância certa, você julgará o valor da sua colheita e armazenará somente o bom grão em seu celeiro.

Adapte as notas à sua personalidde, aos seus objetivos. Leia cada obra com uma certa expectativa, guiando suas anotações de acordo com ela. Toda leitura deve ter um propósito.

Com boas anotações, uma obra pode estar terminada antes de começar.

A inspiração é como uma graça, que passa por nós e não volta.

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II – Como classificar as notas

É inútil fazer uma anotação se você não puder encontrá-la de novo no momento certo.

Portanto, organize-se. Contudo, Sertillanges alerta-nos quanto ao excesso, porque exagerar na organização das anotações é uma “prática deplorável”. É como colecionar brinquedos no quarto.

A ordem é uma necessidade, mas ela deve nos servir, e não o contrário.

O autor sugere a utilização de pastas de arquivos que deixem visíveis as suas classificações, conforme os assuntos em estudo. Sertillanges ainda dá algumas dicas particulares de organização, com base em fichas classificadoras, caixas e gavetas, e ainda recomenda que se observe o método decimal das bibliotecas (embora a mim isso seja uma rigidez digna da ressalva do próprio autor).

Acima de tudo, ser prático.

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III – Como utilizar as notas

Coletadas as notas, temos dois caminhos possíves:

1) com um plano em mente, ordená-las

2) sem um plano em mente, buscar a ordenação a partir delas

Ao se traçar idéias gerais, seja qual for o método, as idéias começam a pipocar. Pouco a pouco, uma ordem superior irá emergir da plano de anotações, dando forma à matéria-prima.

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No próximo post, veremos a quinta e última parte do nosso resumo sobre A Vida Intelectual de Sertillanges.

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