domingo, 4 de outubro de 2009

Aristóteles nos convida à Filosofia - II

Voltemos à obra de Aristóteles.

O próximo trecho do seu Protreptikos separado por Jâmblico trata do propósito, do fim, do telos, aquilo que, sabemos, terá uma importância basilar na construção do prédio aristotélico.

Diz o estagirita que há no mundo as coisas causadas (com propósitos) e as coisas fortuitas (indeterminadas). Entre as coisas causadas, há aquelas causadas pela natureza e as causadas pela atividade mental (inteligíveis, idéias) ou pela arte (techne). O fim da arte é buscar “completar o serviço” da natureza (o Aristóteles da Metafísica dirá que “realiza potências”) (p. ex., alguns grãos germinam naturalmente, enquanto outros precisam de uma atitude do homem para tal)

Bem, e qual o nosso próposito, a razão de nossa causa? Para Pitágoras, por exemplo, é “observar os céus”, e para Anaxágoras “observar as coisas nos céus, as suas estrelas, a lua, o sol”.

O propósito é sempre superior ao criado. O propósito natural é o último a ser completamente finalizado no desenvolvimento. Primeiro, o físico; depois, a alma (forma?).

Coisas amadas em razão de algo – necessidades e causas conjugadas

Coisas amadas por si – bens no sentido estrito

A maioria dos homens desconhece tal distinção. É por isso que os legisladores precisam muito mais de filosofia que os doutores, pois ela se fundamenta no conhecimento da natureza e da verdade – do justo, do bom, etc. As outras profissões tiram seus princípios da experiência, enquanto o filósofo olha para as coisas mesmas, não imitações (mais platônico do que Aristóteles jamais terá sido!). O conhecimento do filósofo é contemplativo, mas nos permite construir tudo a partir dele. A filosofia é como a abóboda celeste, que serve de firmamento às estrelas mais brilhantes (no post sobre o Convivio de Dante falaremos mais disso - em breve).

Viver em potência (capacidade) – “pessoas que sonham”

Viver em atualização (utilização) - “pessoas que acordam” (metáfora presente na República!)

Ora, se viver é ter existência,

Fica claro que uma pessoa sábia certamente existe no mais alto grau e sentido apropriado, e principalmente quando exercita sua faculdade e realmente contempla o que é mais cognoscível das coisas que existem.

Como diz Aristóteles, contentar-se enquanto se bebe uma bebida é diferente de contentar-se com a bebida em si mesma:

Qualquer atividade é ou prazerosa ou dolorosa não porque sentimos prazer ou dor em sua presença, mas porque somos afligidos ou agradados por sua presença.

Assim, negando o hedonismo, Aristóteles afirma que a vida prazerosa só é prazerosa na medida em que a vida causa prazer a quem a tem, e não as suas particularidades. Viver prazerosamente é diferente de saber que a vida é em si prazerosa, de que ela é um bem, e viver constantemente com esta noção é quase que uma exclusividade dos (verdadeiros) filósofos.

Como reitera Jâmblico:

Na filosofia, ser bom e ter sucesso são duas coisas que se separam, e a primeira é superior à segunda.

As palavras finais de Aristóteles no fragmento são para ecoar pela eternidade:

Se o sucesso (puro e simples) é o desejo (puro e simples), a sabedoria já se provou ser a coisa mais desejável. O sucesso é, desta forma, a prática da filosofia.

(...)

Dai que todos devem praticar a filosofia, se puderem; pois ou isso é a vida perfeitamente boa ou, para ser breve, está acima de toda a causas dela em nossas almas.



O terceiro fragmento.

À parte dos dois fragmentos anteriores que já tratamos, havia na Antigüidade duas referências indiretas sobre o Protreptikos.

Um informava que Aristóteles havia dedicado a obra a Themison, rei do Chipre.

Em sua Anthology, João Stobeu cita Theodorus (desconhecido), que cita uma seleção do filósofo cínico Teles, o qual cita o estóico Zenão, que por sua vez menciona a resposta do cínico Crates à primeira leitura do Protreptikos (ufa!). Nela, Crates contradiz, bem ao estilo cínico, a primeira idéia que Aristóteles mencionava, a de que a riqueza e a postura são vantagens para o estudo filosófico (uma afirmação dirigida ao abastado rei Themison). Diz-se que Crates leu tal passagem para seu sapateiro e que depois disse “acho que devo escrever uma exortação a você, Philiscus” – Crates considerava que os ricos tinham muito menos tempo sobrando em suas vidas para poderem praticar a filosofia (e ele não deixava de estar certo!).

A segunda referência trata-se de um argumento protréptico não incluso nos outros fragmentos, um argumento que foi muito modificado através da trajetória que teve nas mãos de doxógrafos e comentaristas do mundo antigo.

Alexandre de Afrodisia, o mais célebre comentarista de Aristóteles de sua época (séculos II e III d.C.) (muito estimado pelos árabes posteriormente), em seu “Comentário sobre os tópicos de Aristóteles” explica a uma determinada altura como termos ambíguos e equívocos podem tanto provar quanto refutar certas proposições. Como exemplo, cita ele um argumento de Aristóteles no Protrético no qual ele diz que não se pode dizer que não se deve filosofar porque isso é investigar a própria questão, e isso é filosofar. Tanto a filosofia quanto a investigação são naturais ao ser humano, e inseparáveis.

Por sua vez, o scholar armeniano David, “o invencível”, no séc. V d.C, em seu próprio Prolegômena à Filosofia expande o argumento de Aristóteles:

Se uma pessoa diz que você não deveria ser um filósofo, teria usado uma demonstração pela qual refutou a filosofia. Mas se ela usou uma demonstração, então está claro que ela filosofa. Pois a filosofia é a mãe das demonstrações.
Assim, qualquer demonstração de que não se deve filosofar é absolutamente falsa.

O professor de filosofia neoplatônico Elias, no séc. VI d.C., em suas aulas introdutórias também parafraseava o argumento:

Se você deve filosofar, você deve filosofar, e se você não deve filosofar, então você deve filosofar. Portanto, em qualquer caso, você deve filosofar. Pois se a filosofia existe, então somos positivamente obrigados a filosofar, pois ela realmente existe. Mas se ela não existe realmente, mesmo assim somos obrigados a filosofar o porquê da filosofia não existir realmente. Mas ao investigar estaremos filosofando, pois a investigação é a causa da filosofia.


Mais ou menos na mesma época, Olimpiodoro, o Jovem - provevelmente o último platônico de Alexandria - oferece a sua versão do argumento em seu comentário sobre Alcebíades (um diálogo platônico também no gênero protréptico), numa forma mais condensada.

Finalmente, um comentarista desconhecido deixou uma nota marginal em um manuscrito do Analíticos Anteriores com a sua versão do argumento, e parece que essa foi justamente a que ficou para a posteridade. Apreciemos:

Se você deve filosofar ou não deve filosofar, você deve filosofar. E, de fato, ou você deve filosofar ou não deve filosofar. Portanto, em qualquer caso, você deve filosofar.


Sim, amigos, devemos filosofar.

Urgentemente.


Querem saber como começar, o que fazer, como estudar?

Aguardem, pois, no próximo post, exporemos um resumo do tratado de Sertillanges sobre a vida intelectual.

Um comentário:

  1. Prof. Renan,

    Gostaria que me disponibilizasse um endereço postal de modo que lhe possa remeter obra de minha autoria.
    Grata

    Maria Inês Chaves de Andrade
    mariaineschavesdeandrade@yahoo.com.br

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