domingo, 25 de outubro de 2009

A Vida Intelectual, por Sertillanges - V

CAP. 8 – TRABALHO CRIATIVO

I – Escrever

Agora é a hora de produzir resultados. Como diz Sertillanges, não se pode estar sempre aprendendo e pretendendo estar pronto; uma hora os frutos precisam aparecer. Ademais, a aprendizagem e a preparação são processos indissociáveis da produção. Você deve escrever por tuda a sua vida intelectual.

Segundo o autor, nós escrevemos para:

* Ver claramente o que se pensa;

* dar definição aos próprios pensamentos;

* estimular a atenção e manter-se alerta;

* começar uma linha investigativa e solidificá-la;

* encorajar-se, vislumbrando resultados;

* formar um estilo próprio e adquirir a arte de escritor.


Quando escrever o suficiente para divulgar, julgue o seu trabalho e então o publique. Alcemos vôo o mais breve possível, recomenda Sertillanges. O contato com o público o incentivará a melhorar, o elogio merecido o estimulará, e a crítica irá testar o seu trabalho e o seu vigor espiritual. Progredir, evoluir, sem parar.

Père Gratry insiste que devemos sempre meditar com a caneta na mão e sugere pessoalmente que dediquemos a hora tranqüila da manhã a este contato da mente consigo mesma. “Um bom começo é a metade”, já dizia Aristóteles.

Quem não produz, habitua-se à passividade; o medo de orgulho – porque o orgulho também gera o medo – ou a timidez aumentam mais e mais; recuamos, cansamo-nos de esperar, tornamo-nos improdutivos.

Diz ainda Sertillanges: “o silêncio é uma diminuição da personalidade”, pois “o estilo é o homem”, se forma com ele. Acima de tudo, escreva de forma verdadeira, sincera, honesta e justa consigo mesmo. Una a verdade à sua individualidade e à simplicidade, analogamente ao que ocorre no Ser. Como falava Pascal, “a eloqüência verdadeiramente espontânea e inspirada zomba da eloqüência baseada em regras de retórica”.

Conforme Sertillanges, o segredo de escrever é estudar as coisas fervorosamente até que elas falem com você e determinem a sua própria expressão. O clichê é um ornamento, uma frivolidade, uma verdade que se perdeu no ar. Paul Valéry dizia que o uso automático das palavras é o que “mata” a língua; ficamos vivos quando usamos a sintaxe com a completa consciência do que estamos fazendo.

Nosso estilo é nossa “feição”, a nossa identidade.

O estilo, que convém a um pensamento, é como o corpo que pertence à alma, como a planta que provém da semente: tem arquitetura peculiar. Imitar é alienar o pensamento; escrever sem caráter é declará-lo vago ou pueril.

Mas ressalta ainda Sertillanges: devemos ser originais sem buscar a originalidade. O embelezamento, a artificialidade, é uma ofensa à verdade, porque “não há embelezamentos no real, e sim necessidades orgânicas”. Não que na natureza não haja brilho, mas é que o brilho por si só é orgânico. O verdadeiro estilo na mão de um artista competente imita as criações da natureza. Observemos a natureza, então, esta criação supinamente maravilhosa de Deus!

Sejamos econômicos, objetivos, retos. A substância é superior à forma. Como dizia o grande Michelagelo, “o belo é a remoção de todo o supérfluo”.

Não seja escravos da moda. Dá água de nascente, não drogas de farmácia. Muitos escritores, hoje, criam seus sistemas: ora, um sistema é algo do artificial e o artificial ofende a beleza.

Acima de tudo, busque ser compreendido por todos. Só duas mentes parecem no mundo tender à simplicidade: a mente limitada e a mente do gênio.

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II – Desapegar-se de si e do mundo

Todo trabalho criativo requer o desapego. Nossa personalidade deve ser posta de lado, e o mundo esquecido – aspiremos às alturas.

Já vimos que o homem é por inteiro e em si necessário, mas o homem que busca a verdade não deve ser uma criatura da paixão, da vaidade, da ambição. Em geral todos tendemos à vaidade, de fato, mas nossas obras não devem se alimentar dela. A inspiração é incompatível com o desejo egoísta. Querer algo para si é pôr a verdade de lado. Devemos servir à verdade, e não usá-la.

Você está pronto para morrer pela verdade? Tudo o que um verdadeiro amante da verdade escreve, tudo o que ele pensa, deve ser como o sinal que São Pedro mártir traçou com o sangue de sua ferida enquanto morria: credo.

Reconhecermos, acima de tudo, que não somos capazes da ciência universal. Esta é, afinal, a mensagem central da obra de Sertillanges: louvemos a humildade e a sinceridade intelectual, não nos enganemos a nós mesmos; a verdade é uma só.

Não devemos jamais temer a reação do público, as opiniões contrárias. Não deve o intelectual sincero buscar ser “amigo de todos” – mais uma vez: seu compromisso é com a verdade.

Ora, o pensamento não será a sua obra, se o cuidado de agradar e de se adaptar escravizar a sua pena. O público então irá pensar por você, quando você é que deveria pensar por ele.

Tenha o espírito sincero e inocente de uma criança, guardando a experiência e o conhecimento de um adulto devotado à verdade.

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III – Constância, paciência e perseverança

Não ouse imaginar que a vida estudiosa seja uma vida fácil. Ser um intelectual o tempo inteiro exige dedicação plena, profunda, constante. Devemos respirar essa vida. Em nosso cotidiano, costumamos nos perder em frivolidades, em desculpas para a preguiça, para a inação, para a não-entrega. Encontramos uma palavra no dicionário, e então nos referimos a outra, e a mais outra, e a curiosidade nos leva a ir a outro verbete, e outro, e assim nos desligamos da nossa anterior concentração (o quão comum é esse tipo de atitude hoje em dia, com a ajuda da internet, não? Entramos em um site, e então clicamos em sucessivos links, e vamos abrindo diversas janelas simultâneas por pura preguiça mascarada de pretensa curiosidade).

Evitemos nos perder em efemeridades, quaisquer delas, recomenda Sertillanges. Superemos a depressão do vazio que tantas vezes nos acomete. Corremos perigo o tempo todo de acomodarmos a mente – ora, o mundo é uma oferta a isso.

Mas ressalta; “dar um tempo” no trabalho e pensar em outros assuntos importantes não é um ato preguiçoso. Lembremos que a inspiração pode vir nos momentos mais fortuitos e inesperados.

De todo modo, rejeite vigorosamente qualquer interrupção. Não é necessário lançar mão de estimulantes; uma boa caminhada, um alongamento, um exercício de respiração, podem nos manter ativos.

Tenha coragem. Pense no seu trabalho como um plano para conquistar a sua liberdade. O estudo é como uma caminhada transcendental – não se entregue no primeiro sinal de fadiga. Mergulhe na atmosfera, viva isso, respire isso. Tenha Platão como seu amigo e confidente, Aristóteles como o vizinho de porta.

Não dê força às circunstâncias. Asseverava Michelangelo: “as obras realizadas à custa de um grande esforço devem dar a impressão de terem sido fáceis de conceber e executar”.

Ora, o trabalho intelectual também requer heroísmo, como nas batalhas. Tenha paciência, cadência, evite a pressa e a prematuridade. Tudo vem no momento certo.

No reino da mente, a quietude é melhor do que a rapidez.

(...) Uma vida bem preenchida é longa.

(...) Trabalhe com um espírito de eternidade.

Ao cristão, diz Sertillanges para respeitar a Providência divina. A excitação febril leva à escravidão espiritual. Ser intelectual é perseverar, absolutamente. Não se entregue ao humor da hora, a modas, a circunstâncias.

Que importa o tempo quando se está com Deus?

(...) O homem de caráter que trabalhou insistentemente por toda uma longa vida pode deixar-se cair como o sol, em uma morte tranqüila e esplêndida.

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IV – Fazer tudo bem feito e até o fim

Além de exercer as virtudes que lhe são próprias, deve o verdadeiro intelectual pensar na perfeição e na completude do seu trabalho.

Não completar uma obra é destruí-la.

Quando decidir começar algo, não desista. Lembre-se que o ser – verdade, infinitude e bem – é perfeito. Como diz Sertillanges, “ter vocação é estar obrigado à perfeição”.

Ponha seu esboço de lado, descanse os olhos e então observe-o de a uma certa distância. Se não aprová-lo, comece de novo. Do contrário, faça uma crítica minuciosa e melhore o máximo que conseguir, até poder dizer a si mesmo que se esgotou a sua capacidade sobre esta obra. Não se importe com o tamanho dela.

Busque infundir a qualidade em seu trabalho de forma imediata; nunca deixe para aperfeiçoar depois, pois isso é um sussurro da preguiça ao pé do ouvido. Uma obra deve ser como uma pincelada, como um fluxo único, portanto, coloque o seu melhor no momento da criação.

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V – Não ir além das próprias forças

Altiora te ne quaesieris (não procures o que está acima de ti)
— Tomás de Aquino

Não force o seu destino. A vocação lança mão de nossos recursos – não os cria. Busque conhecer onde se encontra a sua vocação, de que sacrifício você é capaz, o que é que você pode escrever, a que público que você pode servir, e só então se entregue com paixão.

Toda obra é grande quando o é na medida certa.

Esta é a grande e milenar sabedoria, conhecer a si mesmo.

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Cap. 9 – O TRABALHADOR E O HOMEM

I – Manter o contato com a vida

Depois de tudo isso, comenta Sertillanges, parece até ironia dizer: liberte a sua alma, mantenha-se livre, mas é isso que se deve fazer.

O que mais importa na vida não é o conhecimento, mas o caráter.

O que conhecemos é só o começo; o homem é a obra terminada. Não somos nem só cabeça nem só membros, somos o coração, centro de equilíbrio de nossa concretude. Assim como o filósofo deve ser um tanto de poeta, o artesão deve ser um tanto de filósofo, e por aí vai.

Mantenhamos a mente aberta, não estreitemos os nossos objetivos finais. Não devemos ser escravos do trabalho nem de peculiaridades. Sertillanges nos diz para conciliarmos nossas vidas intelectuais com outros interesses que contribuam com a sua formação, com seu poder criativo.

Sabemos como uma bela música pode nos inspirar; ela desperta a alma com a sua harmonia e emula a ordem do mundo. Ora, o nosso pensamento não é uma música isolada, mas uma voz em uma orquestra. Tenhamos cuidado em não virarmos nossas costas para o resto da vida quando decidirmos pela vocação do estudo.

Recuse-se a ser um cérebro fora do seu corpo.

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II – Saber como relaxar

Os limites no trabalho reforçam o seu vigor, ao invés de o embaraçarem.

A intemperança é um pecado porque ela nos destrói; e nós temos a obrigação de usar a vida com sabedoria porque temos a obrigação de viver.

Amar a verdade, não o prazer decorrente dela, este é um grande e fundamental princípio. Não se ama o amor em si, mas o seu objeto, e isto Platão já nos ensinava.

Relaxar é essencial como a higiene. Devemos mergulhar de volta na natureza para tomarmos fôlego. Bacon é quem dizia que “gastar muito tempo em estudos é ser preguiçoso”. Descanse, organize-se e prepare-se para as horas de mais intenso trabalho. Melhor trabalhar energicamente e então descansar bem, do que ir diluindo o seu trabalho, emperrando-o com diferentes sintomas.

Seja divertido, não deixe de ser uma boa companhia para os outros. Ninguém aguenta um homem melancólio, já diziam Aristóteles e Tomás de Aquino. O verdadeiro descanso é a alegria, claro, sem os excessos, por isso os descansos curtos e freqüentes são o ideal. Sertillanges julga que o campo proporcione maravilhas nessas horas, quando nossa alma se eleva a um plano muito alto em seu contato com a natureza, não permitindo que percamos o realismo em nossas concepções. “O imperativo categórico com certeza não foi concebido em um prado, que dirá a famosa moral aritmética de Bentham”, conclui ele, com bom humor.

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III – Aceitar nossas provações

A salvação só vem pela cruz, reitera o dominicano Sertillanges.

A provação do ideal que parece não se aproximar.

A provação dos tolos que não entendem uma palavra sua e se escandalizam.

A provação dos invejosos.

A provação dos bons que hesitam.

A provação dos medíocres.

Cita Sertillanges a grande passagem em João, 15,19, mais do que simbólica: “Se fôsseis do mundo, o mundo amaria o que era seu; mas, porque não sois do mundo, antes eu vos escolhi do mundo, por isso é que o mundo vos odeia.”

O trabalho é em si um remédio para os problemas tanto da alma quanto do corpo, contra a ansiedade e a preguiça. Com oração e trabalho, tudo pode ser superado, ressalta Sertillanges. “Só encontro uma resposta a todas as críticas,” dizia Emerson, “entregar-me de novo ao trabalho”. O relaxamento, discutido no capítulo anterior, também ajuda a aliviar esse sofrimento.

A verdadeira força espiritual é intensificada na perseguição.

Recolha as pedras que lhe forem atiradas e construa a sua casa. De toda forma, jamais esqueça: a verdade não defende a si mesma, a verdade é. Não confie plenamente em seus juízos e corrija os seus erros quando eles de fato aparecerem.

O que você deseja? A glória vã? O lucro? Então você não passa de um pseudo-intelectual. A verdade? Ela é eterna. Não se deve transformar a eternidade em uma utilidade.

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IV – Saborear as alegrias

Alegremo-nos mesmo nas nossas aflições e contradições. A tristeza e a dúvida matam a inspiração se a elas nos entregarmos.

A recompensa pelo trabalho é tê-lo produzido; a recompensa pelo esforço é ter crescido através dele.

Diz Sertillanges que, emulando uma qualidade dos santos, o verdadeiro intelectual parece escapar dos efeitos da idade, que para tantos homens equivalem à morte. No fim, santidade e real intelectualidade parecem partilhar de uma mesma essência.

A verdade é a santidade da mente.

V – Esperando pelos frutos

“Seguindo este caminho”, diz S.Tomás ao discípulo, “produzirás, na vinha do Senhor, folhas e frutos úteis todo o tempo da vida. Praticando estes conselhos, alcançarás o que desejas. Adeus”

O trabalho cria por si mesmo o seu instrumento – nos faz superar as nossas dificuldades naturais. Os resultados às vezes demoram, mas chegam. Tenha fé em si mesmo e seja fiel à sua vocação. Muitas obras e vidas são melhores do que as suas serão, mas ninguém é melhor para você do que você mesmo. Gostaríamos que nossa chama queimasse sem fumaças ou cinzas, mas tal não é possível, e é nossa primeira obrigação saber disso.

Depois, acrescente e repita com convicção: “Se fizer isso, produzirá frutos e alcançará o que deseja.” Adeus.

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Adeus, Sertillanges, e obrigado por tudo.

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No próximo domingo, começaremos uma série de posts com o resumo detalhado da magistral e exortativa obra de Boécio: A Consolação da Filosofia.

Até mais.

quarta-feira, 21 de outubro de 2009

A Vida Intelectual, por Sertillanges - IV

Cap. 7 – A preparação do trabalho

A LEITURA

I – Não ler muito

Como diz Tomás de Aquino, devemos ir ao mar pelos regatos, e não diretamente. A nossa necessidade primordial é saber como ler e como utilizar a leitura que fazemos.

1ª regra: não ler muito. Sertillanges não recomenda aqui a leitura limitada, mas a leitura sem a “paixão” tão proclamada por aí. Como toda paixão, ela monopoliza a alma, a perturba e exaure suas forças. Devemos ler com inteligência, não com paixão. Ordem, reflexão e concentração levando à criação.

O “leitor apaixonado” sobrecarrega olhos e mente, enquanto o leitor inteligente os preserva com carinho e com um objetivo. De todo modo, afirma Sertillanges:

Para avançar, é preciso remar; nenhuma corrente, por si só, o conduzirá aonde quer chegar. Abra, por si próprio, o caminho e não enverede por todas as sendas que lhe oferecerem.

Cortar principalmente a leitura menos sólida e menos séria. Recomenda Sertillanges que tentemos não envenenar nossas mentes com romances. De tempos em tempos, você pode ler uma boa ficção, mas, lembre-se, trata-se de uma concessão que você faz, pois muita ficção acaba perturbando a mente sem renová-la, confundindo nossos pensamentos.

Evitar ferrenhamente os jornais.

Convém saber o que os jornais contêm, mas eles contêm tão pouco; e seria tão fácil estar ciente desse conteúdo sem se entregar a intermináveis momentos de leitura preguiçosa!

Um intelectual sério deve se satisfazer com crônicas periódicas e só se dirigir aos jornais quando dos graves acontecimentos ou por artigos memoráveis (e olhe lá! Depende do jornal, escolha-o bem)

Como bem arremata Sertillanges: “nunca leia quando você pode refletir”.

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II – Escolher bem

Devemos não só escolher bem os livros como nos livros. Não confie em propagandas, títulos e artes chamativas. Tenha bons conselheiros a respeito da bibliografia. Vá direto à fonte para satisfazer a sua sede.

Procure se associar somente com os grandes pensadores, desenvolvendo o seu critério. Leia somente aqueles livros nos quais as idéias principais estão expressas em primeira mão – não há tantos assim, acredite (Mário Ferreira dos Santos já dizia que os maiores responsáveis pelos grandes erros da filosofia foram e continuam sendo os comentadores de segunda, terceira e quarta mãos, que com o tempo desfiguram as obras principais, facilitando as más interpretações). Os livros em geral repetem muito uns aos outros – ou se contradizem, e isso é também uma forma de repetição. Especialmente ao estudar a história da filosofia, ficamos sabendo que as descobertas no pensamento são de fato muito raras, e que as conclamadas “revoluções do saber humano” não passam de revisões de antigos debates.

Atenha-se ao fundamento, ao fundo permanente de idéias, não a individualidades. Claro, não há como negligenciar certas coisas; às vezes as descobertas vêm por meios enredados e lamacentos, mas procure evitá-los.

Ame os livros eternos que expressam verdades eternas.

Quando abrir o livro, tome o autor como um guia. Mas, não se esqueça, alerta Sertillanges: você é um homem livre e responsável e deve manter o domínio de sua própria alma. É o homem quem escreve livros, e o homem é por natureza imperfeito e corruptível. Filtre bem o que você lê. Acredite em Deus como segurança, porque Ele ama a Verdade e o Bem.

De qualquer forma, o valor de um livro é parte do seu próprio valor e do que você pode tirar dele. Leibniz tirou proveito de tudo; São Tomás formulou um grande número de pensamentos a partir da leitura dos heréticos e dos paganizadores de seu tempo.

Um homem inteligente encontra inteligência em toda parte.

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III – Quatro tipos de leitura

1) Leitura fundamental --> formação própria
Requisito: obediência.

2) Leitura de ocasião --> objetivo em particular
Requisito: domínio mental

3) Leitura estimulante --> adquirir ânimo pelo trabalho e pela prática do bem
Requisito: determinação

4) Leitura recreativa --> relaxamento
Requisito: liberdade


Todo começo deve prezar pela reverência aos mestres do pensamento. Você é um aluno, “você deve crer no seu mestre”, diz Tomás, repetindo Aristóteles. Não uma obediência cega, mas nobre. Só se aprende a comandar depois de obedecer, e o domínio do pensamento só é conquistado através da disciplina.

A escolha de um “pai intelectual” é uma coisa muito séria.

Sertillanges, como já ficou bem claro, costuma aconselhar São Tomás de Aquino como este guia e este pai para as doutrinas superiores, sem, contudo, limitar-se a ele. A obediência deve ser dirigida não a um autor, mas à verdade – sem jamais erguer-se contra aquele por particularidades. Siga os passos do seu mestre, não seja o seu próprio mestre antes que o tempo chegue e que você possa trilhar o caminho por si mesmo.

Quem lê visando um determinado trabalho tem a sua mente dominada pelo que planeja fazer; não mergulha na água, retira algo dela; mantém-se na margem, preservando a liberdade de seus movimentos.

O fascínio da leitura não pode interferir no propósito que a justifica.

Com relação à leitura estimulante, para Sertillanges irá depender das próprias experiências do leitor. O que ajudou antes irá ajudar novamente. Mantenha sempre ao alcance as obras que lhe revigoram para seguir a longa caminhada. Saiba perceber o que é que lhe auxilia neste sentido, quais são os seus “remédios” para a doença d’alma, sem hesitar em retornar a eles até que tenham perdido todo o efeito.

As escolhas para a leitura visando o puro relaxamento são bem menos importantes, embora seja importante entender que certos tipos de leitura não são recreativas o suficiente, enquanto outras o são demais (divertir em francês, dévoyer, no sentido etimológico significa “desviar do caminho”). (Sertillanges nos conta que conheceu um homem que descansara de uma trabalhosa obra lendo a monumental History of Greek Philosophy de Zeller. Era uma distração, mas não o suficiente para desviá-lo)

Somente uma coisa, de acordo com São Tomás, nos dá o verdadeiro repouso: a alegria. Portanto, procurar a distração em algo entendiante seria uma completa perda de tempo e de energia. Leia algo que goste, que não o excite muito a ponto de prejudicar o seu labor intelectual. Tenha inteligência para ler, mesmo nessas horas, ajudando a si mesmo “a desenvolver sua personalidade, a adornar a sua mente, a ser um homem”.

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IV – O contato com os escritores geniais

O convívio com os gênios é uma das graças que Deus concede a pensadores humildes.

Trata-se de um privilégio que pouco damos valor, mas que multiplica nossa alegria e amplia o nosso mundo, tornando-o um lugar mais nobre e melhor para se viver. Segundo Sertillanges, renova-se assim “a glória de ser um homem, de ter a sua mente aberta aos mesmos horizontes que os maiores, de viver nas alturas e de fundar com os seus semelhantes, com os seus inspiradores, uma sociedade em Deus”. Como disse Thérèse von Brunswick ao falar de Beethoven: “logo após os gênios, vêm aqueles capazes de reconhecer seu valor”.

Ao nos aproximarmos de gênios, subimos a outro plano. A sua superioridade por si só já nos beneficia. Como ilustração do que é a genialidade expressa de forma simples e sublime, Sertillanges sugere ouvir os prelúdios de Bach, cuja inspiração nos leva por um breve momento aos céus, onde “ficar e mover-se livremente seria o nosso sonho”.

(...) que bênção é poder elevar-se tão acima das futilidades! Isso nos afina e nos ajuda a fazer a justa apreciação dos fogos de artíficio pueris que tantas vezes formam o produto dos entretenimentos intelectuais.

“A mente humana não pode ir muito longe”, escreveu Rodin, “exceto com esta condição: que o pensamento do indivíduo seja somado paciente e silenciosamente ao pensamento de gerações.”

O gênio nos apresenta, abre as cortinas para a realidade que está lá, óbvia, e que nós não vemos. Através dele, o ser é que se comunica conosco, e não nossas próprias mentes. O gênio simplifica as coisas. Eles não refletem só sobre o seu tempo, mas sobre a humanidade.

A existência do gênio prova o erro dos pensadores maliciosos.

Um erro como o dos judeus que olharam para Jesus e disseram: “pode algo de bom vir de Nazaré?” Sim, algo de bom pode vir do nosso pobre mundo, pois que dele veio um Platão.

Grandes homens também erram, é claro, e com eles também temos a aprender. Não são erros vulgares, mas excessos – mesmo em seus enganos, há no gênio a profundidade e agudez de visão. Segundo São Tomás, nós devemos tudo à verdade, e assim nós devemos àqueles que erraram e que pelo seu erro desenvolveram a nossa mente; é através deles que trabalha a Providência. A Igreja deve às heresias, a Filosofia deve aos sofismas. Como diz Sertillanges, “quem tropeça sem cair dá um passo maior adiante.”

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V – Reconciliar ao invés de acentuar opostos

Lembremos: não nos interessam pensamentos, mas verdades.Não disputas, mas obras e o que delas restar. É futil insistir em diferenças quando tão frutífera é a busca de pontos de contato.

São Tomás, por exemplo, era um grande aristotélico, mas inclinava-se para Platão; sem ser agostiniano, seguido se alimentava da doutrina de Santo Agostinho. Disse que Averroes era um corruptor do peripatetismo, e mesmo assim também o chamava de “sublime espírito” (praeclarum ingenium), citando-o diversas vezes.

Assim, não busque só qualidades, mas a verdade e a penetração filosófica. A crítica constante estreita a inteligência e o afasta da verdade. A fofoca também existe no meio intelectual, mesmo na Teologia! Eleve-se acima dela com toda sua alma. Esqueça a ambição por notoriedade, o embate de partidos, o espírito da discórdia, o estímulo artificial da inteligência. A verdade, nada menos do que ela.

Lancemos pontes, não cavemos fossos entre as suas doutrinas.

As colunas do prédio estão distantes, mas um arco as une no topo.

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VI – Assimilando a leitura e vivendo por ela

Nós comemos para viver, enriquecemos para usar a riqueza, e lemos para pensar. Sertillanges nos alerta para evitarmos atingir o automatismo intelectual. Mesmo sem ler demais, podemos acabar mergulhando numa corrente de indolência.

Um homem que sempre ouve pode nunca aprender.

Apenas obedecer não basta, devemos ter o espírito ativo. Conforme bem diz Sertillanges, “a leitura nos mostra a verdade; temos que torná-la nossa.” Boécio já afirmava que “pela doutrina, a mente do homem só é estimulada a saber”, e não a investigar.

Esse infinito mar de sinais e fenômenos que temos diante de nós não produz conhecimento por si só; o nosso espírito operando sobre eles é que o produz. O pensamento em si é incomunicável de homem para homem. Aprendemos não com olhos e ouvidos, mas com a alma, e o ensino nos dá as ferramentas para fazê-la operar. A mente é iluminada pela própria luz, e, em última análise, pela luz de Deus, que é o nosso único e absoluto mestre.

A origem do conhecimento não está nos livros, está na realidade e em nosso pensamento. Livros são postes de sinalização; a estrada é mais antiga, e ninguém pode fazer a jornada para a verdade por nós mesmos.

Sertillange tece uma bela metáfora: juntar a lenha é essencial, mas sem a faísca não há fogo. É só através do nosso próprio esforço que adquirimos conhecimento. Intelectualmente, “nascemos velhos e devemos tentar morrer jovens”. Precisamos tentar ser nós mesmos, e não há forma mais elevada de se buscar isso do que através do trabalho intelectual.

Termina o capítulo com uma citação de Schopenhauer: “Quando só se fala do que se lê, ninguém nos lê”.

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ORGANIZANDO A MEMÓRIA

I – Que coisas devem ser retidas

A capacidade da memória varia muito nos grandes homens, e nem podemos classificá-los por tal capacidade, mas é inegável o valor de uma boa memória. Aquino nos diz para acumularmos tudo que pudermos de valioso, lembrando que “a comida excessiva é um veneno”.

Não vivemos pela memória, mas a usamos para viver. Guarde tudo o que contribui para o seu propósito intelectual. Quanto ao resto, deixe para o esquecimento.

Pascal tinha o melhor tipo de memória – a que retém só o que deseja reter. Ora, a felicidade para Santo Agostinho era “desejar nada além do bem e ter tudo o que se deseja”.

Se não for bom de memória, não se apavore. Use o que lhe foi dado, e não o que lhe falta! Ademais, a memória, como a própria mente, pode ser exercitada, especializada. Para os católicos, Sertillanges afirma que devem todos “santificar sua memória”, decorando vários salmos e repetindo-os durante o dia.

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II – Em que ordem devem ser retidas

A memória deve escapar do caos, deve ter hierarquia. Procure sempre por conexões e condições disso e daquilo, como se a sua mente fosse um mundo aguardando pela investigação científica.

Uma mente bem organizada é como uma árvore genealógica.

De nada adianta uma miríade de noções sem o entendimento de noções primordiais. Concentre-se na memorização das idéias centrais a cada área do seu saber, deixando as particularidades em segundo plano. Quando novas idéias entrarem na sua mente, agirão retroativamente, avaliando quais os princípios ali são subjacentes a elas. Como diz Sertillanges, “Há, em cada matéria, certas ideias dominantes, que são chaves para tudo”.

Hierarquia + princípios guiadores = a melhor memória e o melhor estudo

A memória é o mecanismo de adaptação do pensamento ao cosmos.

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III – Como podem ser retidas

São Tomás propõe:

1) Ordenar o que se quer reter

2) Aplicar a isso o espírito

3) Meditar sobre isso com freqüência

4) Ao desejar reter algo, tomar a cadeia de conexões daquela idéia por uma ponta, que ela trará o resto consigo.

Assim como Cícero, ele ainda sugere que se conecte a memória das coisas intelectuais com a das coisas sensíveis, pois estas são o objeto próprio do intelecto e pertencem à memória por si mesmas. Faça analogias, metáforas, estabeleça pontos de contato muito claros entre sensível e inteligível. Busque conexões, genealogias, razões ordenativas. Fundamente-se no método silogístico clássico, onde as premissas levam à conclusão. Ao tentar se recordar de algo, pense em todas as circunstâncias ligadas aquele fato que fora retido, como um detetive da sua própria mente.

Acima de tudo, procure manter a atenção, a concentração, a vontade de saber, o espírito intelectual de que este livro tanto fala. Reflita sobre o que é para ser lembrado, pondere, reanalise, circule a idéia na sua mente.

A mente agitada se opõe a estas operações, e, portanto, uma vida pacífica, livre de paixões, é necessária para o bom uso da memória assim como de todas as funções intelectuais.

A memória, enfim, não se trata de quantidade, mas de qualidade, ordem e habilidade no seu uso.

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AS NOTAS

I – Como tomar notas

Leitura + memória + anotações = obras

As anotações são como memórias em papel e se transformam em um grande suplemento para o nosso trabalho. Se fôssemos confiar somente na memória mental, o resultado final seria desastroso, afirma Sertillanges. A memória é um servo não muito confiável per se, como já vimos – ela perde as coisas, ou as enterra, e às vezes não responde chamados....

Lembrar a coisa certa no momento certo exigiria do intelectual um auto-domínio sobre-humano. Assim, livros de anotações e cadernos serão de grande ajuda, como um banco para depositar e retirar a qualquer hora.

Há dois tipos de anotações, ressalta Sertillanges: as mais descompromissadas, e as com objetivos bem delineados para o trabalho mais à frente. Ele nos recomenda que evitemos o excesso com ambos os tipos de notas; muito material disponível pode acabar nos atrapalhando depois, desviando o nosso foco e até perdendo o seu uso.

Sertillanges sugere esperar um pouco durante a leitura antes de sair anotando:

Com calma e à distância certa, você julgará o valor da sua colheita e armazenará somente o bom grão em seu celeiro.

Adapte as notas à sua personalidde, aos seus objetivos. Leia cada obra com uma certa expectativa, guiando suas anotações de acordo com ela. Toda leitura deve ter um propósito.

Com boas anotações, uma obra pode estar terminada antes de começar.

A inspiração é como uma graça, que passa por nós e não volta.

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II – Como classificar as notas

É inútil fazer uma anotação se você não puder encontrá-la de novo no momento certo.

Portanto, organize-se. Contudo, Sertillanges alerta-nos quanto ao excesso, porque exagerar na organização das anotações é uma “prática deplorável”. É como colecionar brinquedos no quarto.

A ordem é uma necessidade, mas ela deve nos servir, e não o contrário.

O autor sugere a utilização de pastas de arquivos que deixem visíveis as suas classificações, conforme os assuntos em estudo. Sertillanges ainda dá algumas dicas particulares de organização, com base em fichas classificadoras, caixas e gavetas, e ainda recomenda que se observe o método decimal das bibliotecas (embora a mim isso seja uma rigidez digna da ressalva do próprio autor).

Acima de tudo, ser prático.

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III – Como utilizar as notas

Coletadas as notas, temos dois caminhos possíves:

1) com um plano em mente, ordená-las

2) sem um plano em mente, buscar a ordenação a partir delas

Ao se traçar idéias gerais, seja qual for o método, as idéias começam a pipocar. Pouco a pouco, uma ordem superior irá emergir da plano de anotações, dando forma à matéria-prima.

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No próximo post, veremos a quinta e última parte do nosso resumo sobre A Vida Intelectual de Sertillanges.

domingo, 18 de outubro de 2009

A Vida Intelectual, por Sertillanges - III

Cap. 5 – O CAMPO DO TRABALHO

I – O estudo comparado

Segundo Sertillanges, não há um conselho preciso e restrito aqui, mas algumas dicas podem ser seguidas.

Por exemplo, nenhum campo do saber sobrevive por si mesmo, devemos ter noção disso. Precisamos passar por cada campo para corrigir gradualmente o centro do nosso saber, de modo que ele fique cada vez mais próximo da verdade. Lembremo-nos que as ciências nada mais são do que recortes do conhecimento pleno do real.

O intelectual deve manter o “ardor épico” de viajar pelas maravilhas do mundo do conhecimento. Homens geniais, grandiosos costumam ser universais – excelentes em um campo, competentes em outros. Organize os seus estudos, divida o tempo entre os diferentes assuntos e a sua ordem hierárquica de interesse. Em todos eles, vá direto ao essencial.

Assim como nenhuma área particular do conhecimento é auto-suficiente, também todas as áreas juntas não são auto-suficientes sem a rainha do conhecimento, a filosofia, nem o todo do conhecimento humano sem a sabedoria que brota da própria ciência divina, a teologia.

Não é por menos que Sertillanges se diz “assustado” com a configuração moderna do conhecimento, na qual a filosofia se afasta das ciências, sendo estas julgadas como filosofias em si mesmas.

As ciências sem a filosofia descoroam-se e perdem sua direção. As ciências e a filosofia sem a teologia descoroam-se ainda mais lamentavelmente, já que repudiam uma coroa divina, e perdem-se ainda mais irremediavelmente, pois a terra sem o céu não pode encontrar o caminho de sua órbita, nem as influências que lhe dão frutos.

Como diz Charles Dunan em Les Deux Idéalismes: “Para a filosofia moderna, os problemas transcendentais não existem. Mas o contrário é verdadeiro: se estes problemas existem, é a filosofia moderna que não existe.”

A ordem do espírito deve corresponder à ordem das coisas.

Portanto, existindo um Ser primeiro e uma Causa primeira, é lá que se completa e ilumina ultimamente o saber. Primeiramente como filósofo, por meio da razão, em seguida como teólogo, utilizando a luz que vem do alto, o homem de verdade deve centrar a sua investigação naquilo que é ponto de partida, regra e fim a título primeiro, naquilo que é tudo para tudo e para todos.

Hoje, que universais, que transcendentais? Resta apenas o caos. Uma summa, uma bíblia, uma arquitetura do saber não é mais possível. Cada homem que deseja conhecer deve construir “a sua summa pessoal”, introduzir ordem ao conhecimento através dos princípios que for descobrindo.

Recomenda Sertillanges que, para entender a ciência teológica, se estude a Summa Theologica de São Tomás de Aquino, tendo à mão o “Catecismo do Concílio de Trento”. Trata-se de um começo difícil, mas logo vem a recompensa. Recomenda também que se estude o latim, para facilitar a compreensão e o acesso a diferentes obras antigas. Deve-se aproveitar obras introdutórias ao pensamento tomista, e para isso Sertillanges indica o seu Saint Thomas d’Aquin e a obra Eléments de Philosophie de Jacques Maritain.

Um tutor receptivo e erudito seria uma ótima companhia nesta caminhada inicial, mas, ainda assim, Sertillanges propõe a solidão. O caminho é duro, sim, porém é totalmente trilhável, e a leitura de Tomás de Aquino será uma bela aula. Compare textos e pessagens, consulte compêndios e enciclopédias, escreva, organize e assente idéias.

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II – O tomismo, esquema ideal do conhecimento

A necessidade de um “corpo diretivo” na percepção intelectiva do Universo. A perda desse sistema coerente, como já bem ressaltou Sertillanges, é um dos grandes males de nossa era.

A genialidade “não possui data”. As coisas eternas são coisas eternas.

Em comparação da água barrenta que nos servem, ele é manancial límpido. Superadas as primeiras dificuldades da maneira de expor arcaica, S. Tomás tranquiliza o espírito, estabelece-o na claridade plena e oferece-lhe quadro maleável e forte para as ulteriores aquisições. O tomismo é síntese. Nem por isso é ciência completa; mas a ciência completa pode apoiar-se nele como num poder de coordenação e de sobrelevação por assim dizer milagroso.

Como um sistema harmônico e sintético, o tomismo reconcilia sistemas adjacentes, indo ao encontro dos fatos. Supino na metafísica, na psicologia racional, na cosmologia, na ética, é como uma arca da salvação. Admite a falibilidade, é claro, pois não se perde na fé. “Tanto o conhecimento quanto a fé nele se convergem, porque tomou a sua posição entre eles como uma fortaleza no encontro de duas estradas.”

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III – Nossa especialidade

Quanto mais se sabe, melhor, mas a mente enciclopédica é uma inimiga do conhecimento.

Conhecimento verdadeiro = scientia = profundezas das causas

Como diz Sertillanges, “devemos sempre sacrificar a extensão pela penetração”. Se em capítulos anteriores, ele professa alguma abrangência, é mais como forma de “preparação mental”. Quando esta formação básica é atingida, então é hora de cavar fundo.

Vencer uma dificuldade é bom; é preciso; mas a vida intelectual não deve ser uma acrobacia permanente.

Devemos trabalhar com gosto, sempre, e não se trabalha com gosto naquilo que não lhe desperta a curiosidade fundamental. Ademais, a nossa entrada em muitas áreas diferentes acaba nos horizontalizando, relaxando o nosso ímpeto vertical, o nosso caminho à verdade superior. Há também a impossibilidade física, biológica, de poder abarcar tudo.

Querendo ser legião, se esquece de ser uma pessoa; tentando ser um gigante, se diminui a própria estatura como homem.

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IV – Os sacrifícios necessários

Sertillanges é bem direto: tudo nos atrai, nos interessa, mas a morte nos espera. Devemos nos submeter e descansar contentes diante das coisas que o tempo e a sabedoria nos negam. Mostremos a nossa humildade, respeitemos as nossas limitações. A virtude e a dignidade brotam desta postura. Meçamos a nós mesmos, meçamos as nossas tarefas. Não sejamos desertores de nós mesmos ao querermos substituir todos os outros.

O homem semi-informado não é o homem que conhece só a metade das coisas, mas o homem que sabe das coisas somente pela metade.

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Cap. 6 – O ESPÍRITO DO TRABALHO

I – O ardor da investigação

Antes de tudo, o espírito da determinação deve estar presente, porque estabelece a mente ativa.

A mente é como uma criança cujos lábios nunca cessam em seus porquês. Nossas alma não envelhece, ela sempre cresce em relação à verdade ela é sempre uma criança.

Indolência e preguiça são os grandes inimigos do conhecimento. Como exclamou certa vez Leonardo Da Vinci, “ó, Deus, tu vendes aos homens todas as coisas boas pelo preço do esforço”.

A mente é incrivelmente plástica – pode sempre voar mais alto. Nunca se entregue aos bons resultados e ao reconhecimento alheio. Prossiga, insista, avance em direção à densa verdade. Mantenha o espírito do conquistador, o espírito do herói em sua odisséia. Seja cada vitória é como um ensaio para a próxima, e a derrota o seja apenas na morte.

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II – A concentração

Este espírito de zelo deve conciliar-se com a concentração recomendada por todos os homens de pensamento profundo. Nada mais funesto do que a dispersão. Difundir a luz é enfraquecê-la em proporções geometricamente crescentes. Pelo contrário, concentrando-a pela interposição duma lupa, o que era aquecido pela livre irradiação arde agora no foco onde o ardor se ateia.

Deixe a sua mente virar uma lupa. Não por acaso é este o símbolo da investigação, da busca. Concentre todos os seus poderes n’um só ponto. Cavar sempre o mesmo buraco nos leva cada vez mais fundo. O trabalho inspirado, a verdadeira criação, depende de poucos elementos fundamentais às suas configurações, basta que sejam bem dirigidos.

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III – A submissão à verdade

Acima da disciplina do trabalho, a disciplina da verdade. Toda descoberta é o resultado de simpatia entre o “Deus interior” e o “Deus universal”, uma mente humilde para um universo ativo. Segundo Sertillanges, nossa inspiração utiliza mais o nosso inconsciente do que a nossa iniciativa. Com o intuito de descobrir a verdade, não olhamos para a nossas mente, mas através dela. Não façamos como os filósofos modernos, não confundamos os meios com os fins. Nossa simpatia com a verdade deve ser como um permanente “êxtase pensante”, afinal só a verdade existe, só o ser é.

Não pensemos de onde é que vem a idéia, mas qual a essência dela. Não importa se Platão, se Aristóteles, se Leibniz... só a verdade é que importa. Treinemos nossas mentes a esse respeito.

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IV – Ampliando a percepção

Por mais restrito que seja o seu momento de concentração, tanto o sujeito quanto o objeto tendem para o universal. Há uma síntese entre o abrangente e o detalhismo (perda de senso de unidade) que devemos encontrar. Ao mantermos o estado de meditação, coadunando pensamento e sentimento, erguemos nossa mente ao alto. E Sertillanges dá um conselho muito importante, principalmente nos tempos de hoje:

Fuja das mentes que não podem nunca se elevar acima de suas regras acadêmicas, que são escravas de seu trabalho ao invés de fazê-lo na plenitude da luz.

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V – O sentido do mistério

Mesmo quando a verdade nos der um belo sorriso, nosso sentido de mistério e perplexão deve permanecer.

Os que pensam que entendem tudo provam por isso mesmo que não captaram nada.

Toda resposta é provisória, toda pergunta a Deus só Deus pode responder. Como diz Claude Bernard, “para entender uma única coisa completamente, teríamos que entender todas as coisas”. São Tomás ao fim de sua vida chegou a declarar, em um famoso epísodio, que não podia mais escrever, afirmando: “tudo o que escrevi me parece palha perto do que vi”.

Não alimentemos a presunção de desejar que chegue depressa este elevado desespero; ele é uma recompensa, é o segredo precursor do grande grito que faz vibrar a alma inundada de luz.

A luz lá no fundo nos estimula para prosseguirmos. A luz que projeta as figuras na caverna nos incita a nos libertarmos das correntes e vermos o sol em sua plenitude. O mistério é essa luz que aos nossos olhos sempre redunda em sombras.

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No próximo post, seguiremos o resumo sistemático deste importante livro.

quinta-feira, 15 de outubro de 2009

A Vida Intelectual, por Sertillanges - II

Sigamos o resumo sistemático desta magnífica obra.

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Cap. 3 – A ORGANIZAÇÃO DA VIDA

I – Simplificar

Organize sua vida material, não sobrecarregue uma caminhada que já é por si só tão difícil. Simplifique a sua vida.

A vida mundana é fatal para o estudo. A ostentação e a dissipação da mente são inimigos mortais do pensamento.

Obedeça a si mesmo, não aos meros costumes. A vocação não se dá sem a concentração. Seus gastos e sua atenção seriam muito melhor aproveitados na coleção de uma biblioteca particular, numa viagem instrutiva ou em feriados para se descansar, ouvir música, etc.

Em seguida, Sertillanges discorre sobre o importante papel que tem a esposa de um intelectual nestes cuidados – em um trecho que provavelmente arrepiaria os cabelos das “mulheres modernas”. A mulher, segundo ele, deve colaborar, evitando levar o marido às trivialidades que não possuam conexão com as aspirações intelectuais. Ela deve ter compreensão, acima de tudo.

Depois do esforço do trabalho, o homem é como que um soldado ferido; precisa ser cercado de carinho e quietude (...) Seja como uma mãe para ele. Isso lhe dará novas forças e o manterá vivo para novas batalhas.

Sobre as crianças, diz Sertillanges que elas de fato tomam muito do nosso tempo, especialmente quando pequenas, por outro lado, elas é que são capazes de elevar a nossa inspiração com a sua alegria e sua inocência, defendendo-nos do “reino do abstrato”. Elas são a imagem do futuro e um motivo de esperança.

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II – Solidão

A solidão é importantíssima, como São Tomás de Aquino já destacava:

Mostra-te amável para com todos [mas] não sejais muito familiar com ninguém, porque a demasiada familiaridade gera o desprezo e dá matéria a muitas distrações.

A célula monástica é como um símbolo desta postura. Todas as grandes obras da humanidade foram preparadas no deserto, incluindo a Redenção do mundo. O próprio fiat lux divino surgiu de um imenso e solene vazio. Afirma Sertillanges:

O retiro é o laboratório do espírito. A solidão interior e o silêncio são as suas duas asas.

Na multidão, o homem perde a sua identidade. Tomás de Kempis dizia em sua Imitation: “I have never hone amongst men without coming back less a man”.

“Como te chamas?” “Legião” – eis a resposta do espírito disperso e dissipado na vida exterior.

Como sempre, os excessos são prejudiciais. Quem se une a Deus mas não aos seus irmãos é um mentiroso, um falso místico, um falso pensador. Quem se une aos homens e à natureza sem estar unido com Deus – sem amar o silêncio e a solidão – é somente um sujeito do mundo, de um “reino de morte”.

Sertillanges reitera: ao decidirmos procurar a Verdade, fizemos uma escolha muito importante; devemos ser fiéis a ela e a nós mesmos.

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III – A cooperação com seus iguais

Recomenda ele que se busque a associação de mentes, coisa tão difícil nesta era de individualismo e anarquia social. Se as antigas oficinas e guildas eram uma reunião de amigos, uma família, hoje as associações são como uma masmorra, uma reunião estritamente formal.

Ter a força para a empreitada agindo sozinho é duríssimo. Começa-se com entusiasmo, e então, assim que alguma dificuldade surge, o demônio da preguiça sussura ao ouvido.

Contar com o apoio de outros que trilhem o mesmo caminho, seguir os bons exemplos, manter a troca de idéias, são sempre atitudes eficazes.

A amizade é uma arte obstétrica; utiliza nossos mais ricos e profundos recursos; abre as asas de nossos sonhos e obscuros pensamentos; ela serve como fiscal de nossos julgamentos, testa nossas novas idéias, mantém o nosso ardor e inflama o nosso entusiasmo.

A amizade, como já ensinava Aristóteles, é a união de espírito.

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IV – O cultivo de contatos necessários

Como já dito, solidão não significa negligência de responsabilidades. Certos contatos são necessários, parte de nossa vida.

Faça o que deve e o que for preciso; se a sua humanidade exigir, as diferentes demandas que ela fizer irão encontrar seu próprio equilíbrio. O Bem, que é irmão da Verdade, ajudará a sua irmã.

Devemos nos mover na riqueza para contemplá-la, não nos afastarmos dela. Solidão demais empobrece a vida. Mesmo um escritor prolífico não deve se trancafiar, ora, nem os monges se trancafiam. O homem muito isolado se cria tímido, abstraído, até um pouco excêntrico. Ele olha para as pessoas como se elas fossem uma proposição a entrar num silogismo, ou um exemplo para ser anotado num bloco de notas.

Por outro lado, referindo-se mais uma vez à mulher do intelectual, diz Sertillanges que a ela não deve abrir a porta da casa para qualquer um. Deve-se estimar a presença dos sábios, não dos “espertos”, dos “gênios”. O casal deve buscar se afastar da frivolidade e da vaidade. Mesmo os tolos têm lá o seu papel, mas não é preciso sair à procura deles, pois que existem aos montes por aí.

Por fim, devemos ser moderados nas conversas:

O valor de uma alma se mede pela abundância do que ela não expressa.

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V – Conservar a dose necessária de ação

Como dito acima, encontrar o equilíbrio correto entre a vida interior e a vida externa, entre o silêncio e o som, porque “o pensamento e a ação têm o mesmo pai”.

O homem que concentra todos os seus poderes no pensamento perde facilmente o seu equilíbrio. Uma diversão é indispensável para a vida mental; precisamos do efeito tranqüilizador da ação.

À força de cultivar o silêncio, corre-se o risco de chegar ao silêncio de morte.

Não só de livros devemos nos alimentar, mas também de fatos concretos. Para Sertillanges, as idéias estão nos fatos, e não vivem por si em uma realidade separada, como pensava Platão. As idéias estão plantadas no solo do real, bem mostrou Aristóteles. Quanta experiências a vida nos oferece todos os dias? Um profundo pensador tira proveito delas.

A idéia em nós desprovida de seus fantasmas (designação escolástica-aristotélica para os resíduos do real deixados em nossa imaginação e que servem de insumo para nossas abstrações) é só um conceito vazio. Onde tivermos mais fantasmas, mais completo e vigoroso será o pensamento.

Recortes da vida + idéias abstratas = idéias concretas

Se você ainda não se vê tomado de exigências intelectuais, busque por causas que o inspirem, que valham a pena. Busque a luz, a reabilitação, a preservação, o progresso, o bem público, enfim. Que as suas causas não demandem toda a sua vida, mas pelo menos todo o seu sujeito, e o “paraíso que se abrirá para você será ainda mais amável, porque você terá provado tanto os tesouros quanto os perigos e os caminhos sinuosos da terra”.

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VI – A preservação do silêncio interior

O espírito do silêncio deve invadir toda a vida. O estado da solidão é a mãe dos resultados; não a solidão em si. Tanto é que Sertillanges, bem diz, pode conceber uma vida intelectual baseada em duas horas por dia de estudos.

De todo modo, devemos ser integralmente intelectuais, o tempo todo, nos submeter sempre à verdade, à Deus. Assim, nos elevaremos acima das coisas ao invés de nos afastarmos delas.

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Cap. 4 – O TEMPO DE TRABALHO

I – O trabalho permanente

Conforme Sertillange,s o Evangelho nos diz que a oração deve ser ininterrupta.

A oração é a expressão de desejo, seu valor vem de nossas aspirações interiores (...) Remova o desejo, a oração termina, altere-o, a oração se modifica, aumente ou diminua sua intensidade, a oração se eleva ou perde suas asas.

Mesmo que não expressemos os nossos desejos, o puro desejo garante a verdade da oração. Para Sertillanges, o orar é como um querer mais, uma vontade de poder transcendente do espírito, o desejar de coisas eternas (aquilo que Nietzsche chamava de mehrwollen). Ora, o estudo, em seu desejo pelo conhecimento, é como uma oração ativa.

Se os mais dos homens se deixam prender por desejos errôneos, o pensador é obsidiado pelo desejo de saber; porque o não utilizará, aproveitando-o como se aproveita um curso de água para mover uma turbina?

Diz São Tomás: “Empenha-te em encerrar no cofre do espírito tudo quanto puderes, como quem pretende encher um vaso”.

Mantenha o seu espírito alerta. A verdade está em todas as partes, nas ruas, nas conversas, nos teatros, nas idéias, nas visitas, nas andanças, nos livros mais comuns. Toda contemplação permite uma reflexão mínima, “toda captação de luz pode levar ao sol; toda estrada aberta é um corredor para Deus”.

Como disse Lamennais em Saint-Malo, diante do mar durante uma tempestade, “todo mundo enxerga o que eu estou enxergando, mas ninguém vê o que eu vejo”.

Aprenda a ver.

Um pensador é como um filtro, no qual as verdades quando por ele passam deixam a sua melhor substância.

Aprenda a ouvir.

Um peão em certos momentos é mais sábio do que um filósofo. [ou como disse o grande São Tomás de Aquino: uma velhinha com fé, de certa forma, sabe mais do que Aristóteles]

O pensador mantém durante toda a sua vida a curiosidade da infância, retém a sua vivacidade de impressão, a sua tendência em ver tudo sob um aspecto de mistério. O pensador se impressiona com o mundo e o admira para todo o sempre.

Sobre os grandes gênios, Sertillanges ressalta que eles não o são considerados até depois de sua morte. A maioria das pessoas não os reconhece, não os vê, não os ouve. O gênio está à frente de seu tempo, essa é propriamente a sua definição.

As grandes descobertas são só reflexões sobre fatos comuns a todos. (...) O que é o conhecimento, senão a cura lenta e gradual de nossa cegueira?

Sertillanges reprova o dualismo espiritual, q ue divide o homem entre a alma esforçada e focada e a alma indolente do cotidiano (um erro que domina o famoso livro da década de 30 de Dorothe Brande sobre como viver a vida de escritor). Não há necessidade alguma de tensão dentro de nossas almas. O que se deve fazer é pôr um controle no imenso recurso da mente. Não há esse desgaste mental que as pessoas imaginam; há um trabalho imprevisível por parte do cérebro – as idéias “pipocam”, qualquer um pode experimentar isso.

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II – O trabalho noturno

Père Gratry nos diz que não devíamos excluir de nossos estudos as horas de letargia e escuridão. Dormir é relaxar uma tensão, é entregar-se à natureza por um momento, como um pequeno abandono do livre-arbítrio individual e uma disposição total ao jogo das forças cósmicas, que permite uma reconfiguração interna em nossas almas. Tirar proveito deste processo é um ótimo recurso para o pensador. Não podemos ser como corujas; lembremo-nos que respeitar e cuidar do corpo é um dos fundamentos da saudável vida intelectual. O sono não é um problema nem um princípio, ele serve ao corpo e à alma.

Idéias novas, caminhos inéditos, todos podem despertar de manhã junto com você. Sertillanges recomenda que se tenha sempre à mão um bloco ou caderno. Faça uma anotação sem ter acordado completamente, se possível, sem mesmo ligar a luz, e então volte para as sombras. Descreva este distinto universo da semi-consciência.

Todo pensador passa por estes surpreendentes e muitas vezes miraculosos momentos de “lucidez matutina”. Muitos tratados, invenções e resoluções vieram destes momentos.

Anote sempre. Escreva enquanto a idéia estiver viva, não adicione nada por sua conta. Escreva do jeito que ela vier, não se preocupe com o estilo e a retórica – embora um estilo precioso possa aparecer involuntariamente.

Desta forma, você tira proveito das vinte e quatro horas do seu dia, garante Sertillanges. Lembremos que o sono age sobre o material já existente; ele não cria nada por si. Assim como o trabalho gentil e regular pode trazer harmonia ao dia, o trabalho inconsciente da noite pode trazer paz e manter as imaginações vagando em nossa mente. Como diz Sertillanges, “a noite dá conselhos. O descanso não é a morte; é a vida, e toda vida rende frutos”.

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III – As manhãs e os serões

A manhã é sagrada, diz Sertillanges. Nossa alma, renovada, vislumbra o seu futuro. É o momento de confirmar nossas vocação como homem e como intelectual.

Acordar de manhã deve ser como emergir das horas profundas de inconsciência, renovado e passando os olhos pelo horizonte da vida. Deveríamos ouvir a nossa própria voz, que possui grande poder de auto-sugestão. Não negligenciar este “escravo” – ele é você, e “a sua própria voz chega com a estranha dominação de quem é ao mesmo tempo igual e diferente”.

Père Gratry sugere ao intelectual cristão a oração Prima pela manhã e a Completa à noite. São orações “completas e doces” segundo Sertillanges, onde está toda a verdadeira natureza e vida. Recomenda o “pai nosso” para pedir o pão e a comida para alimentar a inteligência, e a Ave Maria dirigida à “Mulher vestida com o sol, vitoriosa sobre o erro e sobre o mal”.

Preconizamos o espírito de oração: onde poderá ele nutrir-se melhor do que nas contemplações matinais, quando o espírito repousado, ainda não preso pelas preocupações do dia, levado, erguido nas asas da oração, sobe facilmente aos mananciais da verdade que o estudo dificilmente capta?

Tenha fé, vigor d’alma e coragem logo de manhã, diz Sertillanges, e o resto do seu dia será tomado pelo brilho de tal postura. Ao cair da noite, antes da luz se extingüir, haverá a esperança, como a esperança que temos antes da última hora do Ano Novo.

A noite é muito desperdiçada, muito pouco aproveitada. Os homens comuns, trabalhadores, utilizam-na para “relaxar” para o sono.

Sim, relaxados como o violino cujas cordas se tivessem distendido totalmente. Que trabalhos no dia seguinte, para tornar a afiná-las!

Para o intelectual, sua noite deve ser um momento de quietude, sua ceia uma leve refeição, sua diversão a simples tarefa de ajustar o trabalho do dia e preparar o de amanhã. Não se encontra descanso na dispersão de energia. Há na noite bem aproveitada um verdadeiro duplo descanso – espiritual e físico. Interessante notar como algumas pessoas no sono inconscientemente assumem a posição fetal; isto é um símbolo do sono como um retorno às nossas origens!

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IV – Os momentos de plenitude

Tratemos aqui do trabalho intelectual em si mesmo.

Estude, diz Sertillanges, pondere sobre sua vida. Quais as melhores horas? Qual o melhor turno? Se dispuser de poucas horas e puder situá-las livremente, dê preferência à manhã, mas isso pode variar de acordo com cada um. Ao escolher o horário de estudo, planeje-se.

Será preciso tudo prever para que nada venha obstruir, dissipar, reduzir ou enfraquecer tão preciosa duração. Se quiser que seja uma hora de plenitude, comece por excluir as preparações longínquas; tome todas as disposições úteis; saiba o que quer fazer e a maneira de o fazer; junte os materiais, as notas, os livros; não se incomode com ninharias.

Levante-se pontualmente e imediatamente, tome um café da manhã leve, evite conversações fúteis, ligações inúteis, limite a sua correspondência para o que for estritamente necessário, esqueça os jornais. Todas estas recomendações servem para as horas mais intensas de estudo. O grande objetivo é utilizar o tempo a seu máximo valor. Além disso, o semi-trabalho não é bom nem para o descanso e nem para o próprio trabalho. Devemos ter energia, ser insistentes.

Faça alguma coisa ou não faça nada. O que decidir fazer, faça ardentemente; faça-o com afinco, de modo que toda a sua atividade seja uma série de vigorosos novos começos.

Renovemos o que Sertillanges chamou de “o espírito de oração”, mantendo-nos no estado da eternidade, mente e coração obedecendo sempre à verdade, admirando-a com a plenitude da alma, ouvindo a harmonia da natureza, como Cipião em seu sonho contado por Cícero.

Você deve assegurar-se de que não será perturbado nas suas horas sagradas. A segurança leva à intensidade e à produção intelectual. Como diz Sertillanges, mantenhamos “um cerberus na porta”, pois “cada demanda de você vinda de fora é uma perda de energia interna e pode custar à sua mente alguma preciosa descoberta”. Como disse Emerson em seus Poems: “when half-gods go, the gods arrive”.

A solidão não precisa ser física, ressalta. Um outro intelectual fazendo-lhe companhia é até um reforço, emulando a atmosfera das bibliotecas na busca pela verdade. De todo modo, quando conseguir a solidão das inutilidades do mundo, defenda-a a todo custo. Você é um servo da verdade, e não do mundo.

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No próximo post, exporemos os capítulos de Sertillanges sobre o escopo, o espírito e a preparação do trabalho intelectual.

domingo, 11 de outubro de 2009

A Vida Intelectual, por Sertillanges - I

Lembro aos confrades que esta é uma obra eminentemente católica, dotada de um espírito religioso e temente a Deus. Eu mesmo não sou cristão, tampouco católico (em razão d’algumas divergências antropológicas que procuro resolver), mas admiro e glorifico o seu respeito à verdade, a sua filosofia, a sua postura e as suas realizações – como quem admira o seu melhor amigo, embora tenha ressalvas a lhe fazer. Portanto, aviso, desde já, que não suprimi os trechos contendo concepções claramente católicas, pois o meu objetivo aqui não é agradar nem desagradar a B ou a C, que dirá ser contrário à simbologia e à apologia cristã, já que a atesto plenamente na medida em que se apresenta como um belíssimo louvor à verdade.

Construí este blog com o intuito de divulgar tudo o que exprima as grandes verdades filosóficas, e vocês verão no próprio resumo abaixo que esta é uma postura plenamente de acordo com a vida intelectual responsável, o que com toda sinceridade busco seguir. Dito isto, às pessoas que se sintam de alguma forma ofendidas por considerarem que a vida intelectual deva prescindir de qualquer analogia com a filosofia católica ou com verdades de fé em geral, recomendo somente que estudem. Aliás, um ótimo começo seria a obra universal e magnífica que intitula este post.

Assim, prossigamos.

Baseei este resumo na edição inglesa The Intellectual Life, que contém uma introdução pelo padre James Schall. N’algumas citações eu lanço mão da versão em português que se encontra na internet, mas não a recomendo especialmente, pois ela contém diversos erros de tradução, além da inexplicável supressão de algumas partes importantes da obra original.


A introdução do padre James Schall nesta edição inglesa cita um dos tantos ditos sapientíssimos de Chesterton: “não há assuntos desinteressantes, somente pessoas desinteressadas”.

Alerta-nos ainda que não devemos esquecer jamais o fato de que uma vida intelectual também pode ser uma vida perigosa. Agostinho já nos ensinava que o mais corrupto dos vícios provém não da carne mas do espírito.

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O prefácio de Sertillanges

Segundo Sertillanges, quando o intelectual pensa corretamente, segue Deus passo a passo, mesmo que inconscientemente; ele não segue sua própria fantasia. Nada do que é pensado pela mente se encontra fora do real (recomendo ler meus posts sobre o argumento ontológico).

Todo trabalho intelectual começa por um momento de êxtase. Só depois, num segundo momento, é que a construção de idéias entra em cena. Possuimos como que duas memórias: a memória “fechada”, do dia-a-dia, e a memória “descobridora”, da inspiração.

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Sertillanges sobre a auto-descoberta.

Escutar a si mesmo envolve a mesma dificuldade de se escutar a Deus. O pensamento criativo, nosso verdadeiro self, só nos é revelado no silêncio d’alma, ou seja, na exclusão de pensamentos tolos que levem à indulgência, à distração pueril. No afastamento das sugestões que nossas paixões desordenadas vivem murmurando, nossas escolhas práticas e sociais também passam pelo momento de êxtase, longe do self ambicioso e passional. Acima de tudo, devemos nos submeter à verdade e ao seu veredito.

Os grandes homens não têm medo do que falam a respeito deles, pois, mesmo na solidão, sentem não estarem sozinhos. Esta é verdadeira humildade. Devemos nos regozijar no que nos foi dado, não no que está além de nosso poder.

Quando o mundo não gosta de você, ele se vinga de você; se acontece dele gostar de você, ainda assim ele se vinga, o corrompendo. O único recurso é trabalhar distante do mundo, tão indiferente de seus julgamentos quanto pronto para lhes servir”. (é melhor talvez que ele o rejeite)

Diante da superioridade dos outros, só há uma atitude honorável: ter orgulho. Nietzsche é quem dizia: “nunca ignore, nunca se recuse a enxergar o que pode ser pensado contra o seu próprio pensamento”. Ora, como ser duro consigo mesmo, tão favorável à auto-perfeição, sem um amor incondicional pela verdade, sem a devoção à verdade?

Sobre a investigação exageradamente abrangente, diz Sertillanges (e ele ainda retomará o assunto lá adiante):

A estrela à qual se olha por muito tempo e muito intensamente pode, por isso mesmo, cintilar cada vez mais hesitantemente até que desapareça do céu.

Sobre evitar a leitura rápida e o mergulho precoce num tema:

Mesmo ao custo do sofrer, a criação é um prazer; e, além da criação, a veneração de uma idéia assim que ela vier.

A razão não pode fazer tudo. Seu último passo é reconhecer suas limitações (Pascal). Se a razão ambiciona o mundo, a fé dá a ela a infinitude.

No seu prólogo, informa-nos Sertillanges, como um bom neo-tomista, que a base para sua obra é a famosa carta De Modo Studendi, d’autoria de São Tomás de Aquino, que expõe breves e sólidos conselhos para a vida de estudos.

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CAP. 1 – A VOCAÇÃO INTELECTUAL

I – O intelectual é um consagrado

A Vocação é diferente da simples leitura e expressão. A Vocação equivale a penetrar, a manter um esforço metódico, a buscar atingir a plenitude do desenvolvimento intelectual. A vida intelectual é muito recompensatória, mas exige um esforço inicial do qual poucos são capazes. O intelectual é como um atleta da mente.

A verdade só serve aos seus escravos

Confie sim no seu gosto pessoal, ressalta Sertillanges, pois o nosso perfil caracteriza e revela nossa Vocação. Toda vida de um homem individual está simbolizada em um momento característico da vida de Cristo.

Não prove infidelidade a Deus, ao seus irmãos e a si mesmo ao recusar um chamado sagrado.

Não entre na vida intelectual por ambição ou vaidade. A ambição ofende a verdade eterna ao subordiná-la a si.

Mas para aceitar o fim você também deve aceitar os meios. Querer possuir um bem sem pagar por ele é o desejo universal! (dos covardes e fracos) Quantos jovens com a pretensão de se tornarem trabalhadores não desperdiçam miseravelmente seu tempo, seu vigor, seu ideal! Ou não trabalham (não têm tempo!) ou trabalham mal, sem jamais saber para onde estão indo ou querem ir.

Só que o gênio é fruto de uma paciência organizada e inteligente. O gênio é a conjugação entre o ascetismo especial e a virtude heróica de cada dia, uma síntese que resulta no que Sertillanges chama de “solidão apaixonada”.

Se consentirem a esta dupla oferta, digo-lhes em nome de Deus da verdade para não perderem a coragem. (...) A liberdade apresenta armadilhas que as rigorosas obrigações podem nos ajudar a evitar.

O que é o amor pela sabedoria? Santo Tomás de Aquino, ao vislumbrar de longe a belíssima cidade de Paris, disse ao seu companheiro: “irmão, eu daria tudo aquilo pelo comentário de Crisóstomo sobre São Mateus”.

Sertillanges pergunta ao leitor jovem: você tem duas horas por dia, e pode abdicar delas e sofrer para aproveitá-las? Se sim, tenha fé. Se não, descanse na quietude da certeza.

Aprenda a utilizar este precioso tempo. Mergulhe todo dia da sua vida na fonte que sacia e renova sua sede. Vale um sacrifício extra, vale por ter a capacidade e a missão de levar mais homens à verdade. Sertillanges nos diz que, seguindo este curso, um dia teremos espaço entre as nobres mentes.

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II – O intelectual não permanece sozinho

Não importa o quão sozinho ele esteja materialmente, não deve ceder ao encanto do individualismo. O isolamento esteriliza e paraliza. Ao ser só uma alma, se deixa de ser um homem. Trabalhar o humano é trabalhar para o homem, para suas necessidades.

Um cristão ativo, ressalta Sertillanges, deve viver constantemente no universal, na história.

Toda verdade é prática; a mais aparentemente abstrata, a mais enclausurada, é também prática. Toda verdade é vida, direção, um caminho levando ao fim do homem.

Disse Jesus Cristo: “Sou o caminho, a verdade, a vida.” Somos parte de Jesus, seu legado em palavra.

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III – O Intelectual pertence ao seu tempo

Deus nos colocou em um determinado lugar e tempo. O nosso espírito deve ser insistente e corajoso, mas sem o mero diletantismo. Evitar o amor pelo passado, que não reconheça a presença de Deus. Ora, Deus não envelhece, todas as eras lhe pertencem.

Em especial sobre o séc. XX, diz Sertillanges (a 1ª edição do livro é da década de 30):

Estamos em um trem disparando à frente na velocidade máxima, sem sinalizações visíveis. O planeta não sabe para onde está indo.

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Cap. 2 – AS VIRTUDES DO INTELECTUAL CATÓLICO

I – As virtudes comuns

Não basta a inteligência, pra começo de conversa. É preciso estar em harmonia com seus princípios de caráter moral.

Não se confia em vendedores de jóias que vendam pérolas e que não usem nenhuma.

Toda força isolada em um todo equilibrado torna-se vítima de seus arredores. A vida é uma unidade. Como imagens de Deus, que é trinitário, somos ser, razão e amor.

Diga-me o que você ama, eu lhe direi o que você é.

A verdade visita aqueles que a amam virtuosamente. Por isso o homem de gênio intelectual que é mais completo em si mesmo já é um homem virtuoso. Num vislumbre de socratismo, diz Sertillanges que as raízes da verdade e da bondade estão no mesmo solo, se comunicam. Ao praticar a verdade conhecida, damos valor à verdade ainda desconhecida. Santo Tomás de Aquino é quem disse:

A virtude chamada verdade é uma certa verdade pela qual um homem em palavra e em ato mostra a si mesmo como ele é.

Não pensamos somente com a inteligência. O corpo também precisa estar bem cuidado, não devemos negligenciá-lo. Se Platão já afirmava que “pensamos com toda nossa alma”, Sertillanges diz que “pensamos com todo o nosso ser”. Assim, também devem as virtudes morais ser exercitadas. Controlar nossas paixões é despertar em nós mesmos o sentido do universal. A pureza da alma leva à pureza do pensamento. A moral está atada à verdade. Participar do universal é participar do Espírito Santo e ser levado até a Verdade.

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II – A virtude apropriada ao intelectual

Ser estudioso. Como diria Aristóteles, a virtude é o que se encontra no meio-termo entre dois extremos. Logo, entre a negligência e a vã curiosidade, há a estudiosidade.

O homem que entrega seu conhecimento à ambição deixa de ser um intelectual. Ele não deve deixar de cumprir com seus bons atos face à atividade intelectual, de outro modo, abalaria um próprio fundamento da verdade: a virtude. Já o homem que sacrifica os seus estudos a todas as atividades do dia-a-dia é só um diletante.

Dizia São Tomás em sua De Modu Studendi:

Altiora te ne quae sieris(não busque o que está alem do seu alcance)(...) Volo ut per rivolus, non statim, in mare eligas introire (quero que você decida ir ao mar pelas correntes, não diretamente a ele)

Sabemos que a natureza busca exceder os seus poderes, aperfeiçoar-se, e que o homem é quem nela mais aspira à perfeição. Mas não tenha pressa. Comece pelo começo, sem pular etapas.

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III – O espírito de oração

Oratione vacare non desinas (nunca desista de orar)
— São Tomás de Aquino

Todo estudo é um estudo da eternidade.
— Van Helmont

A ciência é o conhecimento das causas, dos elos. Por debaixo desta atividade, está a Verdade Suprema. Uma verdade particular é só um símbolo, um símbolo real, um “sacramento do absoluto”. O real é uma manifestação de Deus porque criado por Ele.

A inteligência só faz a sua parte por completo quando realiza uma função religiosa, isto é, quando venera a verdade suprema em suas aparências menores e dispersas.

Quando o estudo contempla inteligíveis fixos, torna-se um “estudo da eternidade”. Há verdades cuja comparação com as montanhas as torna efêmeras como a brisa.

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IV – A disciplina do corpo

A mente só pode comunicar através do corpo. Aristóteles já dizia que uma boa constituição corporal corresponde à nobreza da alma. Por isso, recomenda-nos Sertillanges que não desprezemos a ciência da higiene e da ergonomia, porque até elas enriquecerão a sua atividade filosófica.

Respire muito oxigênio. Trabalhe numa posição que dê liberdade para os pulmões e não comprima outros órgãos. Exercite-se. Descanse. Tenha cuidado com a alimentação. Não durma nem muito pouco nem em excesso. Exercite a sua sabedoria corporal, como já recomendava São Tomás.

O amigo do prazer é inimigo do seu corpo e depressa se torna inimigo da sua alma. A mortificação dos sentidos é requerida para o pensamento e só ela nos pode colocar naquele estado clarividente de que falava Gratry. Se obedecer à carne, estará a caminho de ser carne, quando deveria ser todo espírito.

Ora, por que Aquino era chamado de Doctor Angelicus? Será porque ele era dotado de asas? Não, mas porque nele tudo se subordinava ao pensamento genial e santo, porque ele era todo alma, “uma inteligência servida por órgãos” (e jamais o contrário).

Nos próximos dias, seguiremos com a exposição desta obra. Obrigado.

domingo, 4 de outubro de 2009

Aristóteles nos convida à Filosofia - II

Voltemos à obra de Aristóteles.

O próximo trecho do seu Protreptikos separado por Jâmblico trata do propósito, do fim, do telos, aquilo que, sabemos, terá uma importância basilar na construção do prédio aristotélico.

Diz o estagirita que há no mundo as coisas causadas (com propósitos) e as coisas fortuitas (indeterminadas). Entre as coisas causadas, há aquelas causadas pela natureza e as causadas pela atividade mental (inteligíveis, idéias) ou pela arte (techne). O fim da arte é buscar “completar o serviço” da natureza (o Aristóteles da Metafísica dirá que “realiza potências”) (p. ex., alguns grãos germinam naturalmente, enquanto outros precisam de uma atitude do homem para tal)

Bem, e qual o nosso próposito, a razão de nossa causa? Para Pitágoras, por exemplo, é “observar os céus”, e para Anaxágoras “observar as coisas nos céus, as suas estrelas, a lua, o sol”.

O propósito é sempre superior ao criado. O propósito natural é o último a ser completamente finalizado no desenvolvimento. Primeiro, o físico; depois, a alma (forma?).

Coisas amadas em razão de algo – necessidades e causas conjugadas

Coisas amadas por si – bens no sentido estrito

A maioria dos homens desconhece tal distinção. É por isso que os legisladores precisam muito mais de filosofia que os doutores, pois ela se fundamenta no conhecimento da natureza e da verdade – do justo, do bom, etc. As outras profissões tiram seus princípios da experiência, enquanto o filósofo olha para as coisas mesmas, não imitações (mais platônico do que Aristóteles jamais terá sido!). O conhecimento do filósofo é contemplativo, mas nos permite construir tudo a partir dele. A filosofia é como a abóboda celeste, que serve de firmamento às estrelas mais brilhantes (no post sobre o Convivio de Dante falaremos mais disso - em breve).

Viver em potência (capacidade) – “pessoas que sonham”

Viver em atualização (utilização) - “pessoas que acordam” (metáfora presente na República!)

Ora, se viver é ter existência,

Fica claro que uma pessoa sábia certamente existe no mais alto grau e sentido apropriado, e principalmente quando exercita sua faculdade e realmente contempla o que é mais cognoscível das coisas que existem.

Como diz Aristóteles, contentar-se enquanto se bebe uma bebida é diferente de contentar-se com a bebida em si mesma:

Qualquer atividade é ou prazerosa ou dolorosa não porque sentimos prazer ou dor em sua presença, mas porque somos afligidos ou agradados por sua presença.

Assim, negando o hedonismo, Aristóteles afirma que a vida prazerosa só é prazerosa na medida em que a vida causa prazer a quem a tem, e não as suas particularidades. Viver prazerosamente é diferente de saber que a vida é em si prazerosa, de que ela é um bem, e viver constantemente com esta noção é quase que uma exclusividade dos (verdadeiros) filósofos.

Como reitera Jâmblico:

Na filosofia, ser bom e ter sucesso são duas coisas que se separam, e a primeira é superior à segunda.

As palavras finais de Aristóteles no fragmento são para ecoar pela eternidade:

Se o sucesso (puro e simples) é o desejo (puro e simples), a sabedoria já se provou ser a coisa mais desejável. O sucesso é, desta forma, a prática da filosofia.

(...)

Dai que todos devem praticar a filosofia, se puderem; pois ou isso é a vida perfeitamente boa ou, para ser breve, está acima de toda a causas dela em nossas almas.



O terceiro fragmento.

À parte dos dois fragmentos anteriores que já tratamos, havia na Antigüidade duas referências indiretas sobre o Protreptikos.

Um informava que Aristóteles havia dedicado a obra a Themison, rei do Chipre.

Em sua Anthology, João Stobeu cita Theodorus (desconhecido), que cita uma seleção do filósofo cínico Teles, o qual cita o estóico Zenão, que por sua vez menciona a resposta do cínico Crates à primeira leitura do Protreptikos (ufa!). Nela, Crates contradiz, bem ao estilo cínico, a primeira idéia que Aristóteles mencionava, a de que a riqueza e a postura são vantagens para o estudo filosófico (uma afirmação dirigida ao abastado rei Themison). Diz-se que Crates leu tal passagem para seu sapateiro e que depois disse “acho que devo escrever uma exortação a você, Philiscus” – Crates considerava que os ricos tinham muito menos tempo sobrando em suas vidas para poderem praticar a filosofia (e ele não deixava de estar certo!).

A segunda referência trata-se de um argumento protréptico não incluso nos outros fragmentos, um argumento que foi muito modificado através da trajetória que teve nas mãos de doxógrafos e comentaristas do mundo antigo.

Alexandre de Afrodisia, o mais célebre comentarista de Aristóteles de sua época (séculos II e III d.C.) (muito estimado pelos árabes posteriormente), em seu “Comentário sobre os tópicos de Aristóteles” explica a uma determinada altura como termos ambíguos e equívocos podem tanto provar quanto refutar certas proposições. Como exemplo, cita ele um argumento de Aristóteles no Protrético no qual ele diz que não se pode dizer que não se deve filosofar porque isso é investigar a própria questão, e isso é filosofar. Tanto a filosofia quanto a investigação são naturais ao ser humano, e inseparáveis.

Por sua vez, o scholar armeniano David, “o invencível”, no séc. V d.C, em seu próprio Prolegômena à Filosofia expande o argumento de Aristóteles:

Se uma pessoa diz que você não deveria ser um filósofo, teria usado uma demonstração pela qual refutou a filosofia. Mas se ela usou uma demonstração, então está claro que ela filosofa. Pois a filosofia é a mãe das demonstrações.
Assim, qualquer demonstração de que não se deve filosofar é absolutamente falsa.

O professor de filosofia neoplatônico Elias, no séc. VI d.C., em suas aulas introdutórias também parafraseava o argumento:

Se você deve filosofar, você deve filosofar, e se você não deve filosofar, então você deve filosofar. Portanto, em qualquer caso, você deve filosofar. Pois se a filosofia existe, então somos positivamente obrigados a filosofar, pois ela realmente existe. Mas se ela não existe realmente, mesmo assim somos obrigados a filosofar o porquê da filosofia não existir realmente. Mas ao investigar estaremos filosofando, pois a investigação é a causa da filosofia.


Mais ou menos na mesma época, Olimpiodoro, o Jovem - provevelmente o último platônico de Alexandria - oferece a sua versão do argumento em seu comentário sobre Alcebíades (um diálogo platônico também no gênero protréptico), numa forma mais condensada.

Finalmente, um comentarista desconhecido deixou uma nota marginal em um manuscrito do Analíticos Anteriores com a sua versão do argumento, e parece que essa foi justamente a que ficou para a posteridade. Apreciemos:

Se você deve filosofar ou não deve filosofar, você deve filosofar. E, de fato, ou você deve filosofar ou não deve filosofar. Portanto, em qualquer caso, você deve filosofar.


Sim, amigos, devemos filosofar.

Urgentemente.


Querem saber como começar, o que fazer, como estudar?

Aguardem, pois, no próximo post, exporemos um resumo do tratado de Sertillanges sobre a vida intelectual.