domingo, 27 de setembro de 2009

Aristóteles nos convida à Filosofia

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Hoje comentaremos sobre uma das obras mais influentes e famosas da filosofia no mundo antigo, e que hoje infelizmente pouco se discute: o Protreptikos, ou, como se convencionou chamar, Convite à Filosofia.

Trata-se de uma obra peculiaríssima que mostra uma face de Aristóteles muitas vezes desconhecida. Se o bojo do legado aristotélico põe às claras uma mente lógica, supinamente racional, um discurso por vezes muito árido, e uma oposição ferrenha a grande parte do legado de seu mestre, o Protreptikos, por sua conta, retira das sombras um outro homem, quase o seu antípoda. Vemos nela o perfil de um vigoroso discípulo de Platão, um apologeta sangüíneo do conhecimento universal, um devoto da sabedoria que evidencia o seu amor através de uma retórica límpida e fluída, um jovem akademikos que, se ainda não apresentava a originalidade peripatética que viria ser a realização maior do pensamento ocidental, já demonstrava um apego tão entusiasmante à verdade que acabaria por influenciar grandes personagens da filosofia.

Já na antigüidade, sabia-se que o Crates, o cínico de Tebas, teria lido a obra para um sapateiro, contando-lhe que originalmente ela fora dirigida a Themison, um rei do Chipre.

Cícero, no primeiro século antes de Cristo, a adapta e a expande, compondo o seu Hortensius, um convite para os grandes cidadãos de Roma à filosofia grega.

Cinco séculos depois, a realização do orador romano é lida pelo jovem Santo Agostinho, a quem influencia definitivamente para a vida filosófica - que viria a ser exemplar.

Praticamente “morto” na história da filosofia, o Protreptikos voltou à vida em 1869 através do scholar inglês Ingram Bywater, que encontrou fragmentos seus inseridos no texto protréptico (exortativo) do neopitagórico assírio Jâmblico de Chalcis.

Na edição de 2002 sobre a qual me baseei, são dispostos discriminadamente os três pedaços que nos restaram, pedaços que, se não nos permitem o pleno contato com o discurso original, ao menos nos possibilitam um vislumbre muito substantivo, no qual é inevitável a leitura de passagens impressionantes e iluminadoras.


O primeiro achado

Por mais de mil anos, pouco mais se teve acesso à exortação aristotélica do que dois parágrafos, presentes na imensa coleção de ditos da sabedoria antiga que João Stobeu arranjara para o seu filho (hoje em dia publicada sob o título Anthology ou Florilegia), e não se sabia a origem exata de tais trechos.

Só na segunda metade do séc. XIX, com o grande boom da filologia clássica, é que scholars alemães lançaram a hipótese de que os fragmentos seriam parte do Protreptikos perdido de Aristóteles. Eis que no fim do mesmo século, são descobertos diversos papiros em Oxyrhynchus, Egito, em um sítio que teria sido local de reciclagem de papiros. Entre eles, os fragmentos POxy666, um bloco do que aparentemente teria sido um livro muito caro, confeccionado no século II depois de Cristo, com toda a obra transmitida por Stobeu, e que confirmou serem aqueles parágrafos originários do Protrepticus (além de reforçarem a idéia de que Stobeu estaria se baseando numa antologia anterior à sua).

Nesses dois breves parágrafos que sobreviveram à história, Aristóteles ataca a valorização dos bens materiais e defende a valorização da alma e da busca pela sabedoria.


O segundo achado

Jâmblico de Chalcis foi um filósofo e professor assírio que viveu entre os séculos II e III d.C. De perfil neopitagórico, compôs o De Secta Pythagorica, cujo 2º volume constituía o seu própro Protrepticus, onde expunha diversas passagens de Pitágoras, Platão e Aristóteles, embora sem nunca citar suas autorias. A hipótese de alguns destes trechos serem parte da obra perdida do estagirita só foi ser efetivamente investigada em 1869, a partir do jovem scholar inglês Ingram Bywater, e hoje muitos especialistas concordam com a reconstrução (embora ainda haja dúvidas na hora de delimitar quais palavras são de Iâmblico e quais são do próprio Aristóteles).

Exponhamos brevemente tais fragmentos:

No primeiro deles, Jâmblico, já tendo parafraseado Pitágoras e Platão, parte para uma seção repleta de passagens do grande estagirita. Começamos com algumas afirmações notáveis (tradução minha a partir do inglês):

Toda natureza, como se tomada de razão, não faz nada por acaso, mas tudo por algum sentido, e a natureza dedica-se mais a banir o fortuito daquilo que é por algum sentido do que se dedica às artes (technai) – porque as artes são na verdade imitações da natureza.

Ora, essa pode ser uma das passagens mais platônicas do corpus aristotélico!

Em seguida, ele corrobora a noção de seu mestre sobre a alma; de que o corpo existe em razão da alma, e que ela contém em si duas partes: a racional e a irracional, esta por sua vez existindo em razão daquela, com seu fim àquela. As coisas autônomas são sempre superiores às coisas dependentes (“como escravas”)

A verdade é que irá se perceber nestes escritos de Aristóteles que a base sobre a qual gravitam suas exposições é o princípio básico e inescapável de que, como ele diz:

o que é inferior sempre serve em razão do que lhe é superior

Por isso, a contemplação não é boa por si mesma, mas só a contemplação que se dá sobre elementos de ordem e princípios universais. Se a visão se dirige a objetos visíveis, o intelecto se dirige os objetos inteligíveis, superiores àqueles.

Desprovido de percepção e intelecto, um humano torna-se algo muito similiar a uma planta; desprovido unicamente do intelecto, um animal selvagem; desprovido do elemento irracional, mas retendo o intelecto, um homem guarda semelhança com um deus.

É sobre tal passagem que Jâmblico exorta o leitor a observar o reino de Deus e das divindades jamais pelo fim prático, jamais pela subserviência às nossas volições. O “sucesso genuíno” vem de dirigirmos nossa mente à Deus.

É o que reforça a passagem aristotélica seguinte:

uma pessoa virtuosa não é de forma alguma sujeita aos caprichos da sorte

Mas não deixemos de lado a exortação ao bem prático e político da vida, diz Jâmblico, já que “nosso diálogo é com seres humanos [não com deuses]” (expressão provavelmente retirada de Platão, Leis V, 732e3).

Sobre o corpo, Aristóteles nos diz que ele é como uma ferramenta para nossa vida; perigosa e, se mal utilizada, causa-nos muito prejuízo.

O conhecimento para administrar a nossa vida? A Filosofia. Ela é a “sabedoria autoritária”, pois domina inevitavelmente todos os saberes, todas as ciências, todas as técnicas. No que alguns dizem ser uma réplica direta à filosofia de Isócrates, Aristóteles afirma:

Como alguém poderia reconhecer o discurso se não conhecesse as sílabas?

Não é exceção a arte de legislar. A lei é uma forma de sabedoria, e baseia-se nela, assim como a autoridade.


Ora, então, o que nos impede de filosofar? A filosofia é uma atividade fácil, mesmo que desprovida de retorno material. Ela não precisa de ferramentas nem de locais especiais – só precisa do pensamento e da inteligência. Se ela é a mais simples e mais superiora das artes, e se é por ela que buscamos de forma mais pura e intensa a sabedoria e o conhecimento, coisas essenciais à vida humana, nada mais resta a Aristóteles do que afirmar:

É escravidão desejar [simplesmente] viver ao invés de viver bem.

A aquisição da sabedoria é muito mais fácil do que a de quaisquer outros bens. Além disso, a sabedoria é também a virtude mais desejável, melhor que todas as outras virtudes particulares. Para explicar isso, Aristóteles expõe mais exaustivamente algumas noções (platônicas) sobre a composição da alma. Não só o homem tem uma hierarquia em sua essência, mas, dentro da própria alma, há também a parte que manda, possuidora da razão e do intelecto, e a parte que obedece. O que efetivamente somos é a parte racional, afirma o estagirita.

Função suprema do homem = saber a verdade

Funções menores = o prazer, a saúde, etc.

Diz Aristóteles:

A sabedoria não é produtiva, pois o fim precisa ser melhor do que a coisa que vem a ser, e nada é melhor que a sabedoria, exceto a virtude e o sucesso – e nenhum destes é um fim distinto dela.

Raciocina Aristóteles deste modo: viver é desejável por causa da presença da percepção, e a percepção é um tipo de conhecimento, e é porque a alma pode conhecer que nós desejamos viver. Logo, a sabedoria é a virtude mais desejável pelo ser humano (veja como ele exalta a superioridade da visão sobre os outros sentidos no primeiro parágrafo da Metafísica)

Mesmo as pessoas mais ambiciosas não aceitariam ter muitas posses e prazeres imediatos se tivessem que se privar de sua sanidade. Aristóteles dá o exemplo do sonho, que é por vezes algo prazeroso, mas não desejável em si, porque forma imagens falsas da realidade. E o medo da morte, por sua vez, decorre do medo do que não se conhece e que é inevitável. Daí o nosso prazer e contentamento para com tudo aquilo que nos é familiar – seja uma coisa ou uma pessoa. O que é claro e conhecido é para ser amado (agapeton – o amor intelectual)

Mesmo na vida mais duríssima, “seria ridículo”, diz Aristóteles, não manter-se em direção à sabedoria. Somente o viver bem é superior ao simples viver (não veremos ecos desta concepção no cristianismo, que condena o suicídio?).

Ainda sobre a o prazer pela verdade, o estagirita ressalta que a beleza corporal só nos maravilha porque nossa visão é limitada. Não podemos enxergar a má composição das pessoas. Para quem tem um vislumbre do eterno, essas coisas invejadas pelas pessoas parecem muito tolas.

Desde o início, somos naturalmente construídos como se tivéssemos de ser todos punidos, como falam nos ritos de iniciação. Pois há um dito inspirado dos antigos que diz que a alma “paga penalidades” e que vivemos para a reparação de certos grandes pecados.

A conjunção da alma com o corpo parece ser tal penalidade. (Aristóteles conta-nos que os tirrenos muitas vezes torturavam os prisioneiros acorrentando-os a cadáveres, membro a membro, e então a alma parecia se estender sobre aquele corpo!). Por isso é que se diz que “o intelecto é o Deus em nós” e que “a vida mortal contém uma porção de algum Deus” (Hermótimo ou Anaxágoras seria o autor de tais máximas, segundo Aristóteles) – nada mais do que a continuação daquilo que a tradição grega chamava de mikrokosmos.

No próximo post, continuaremos nossa exposição desta obra fantástica e inspiradora.

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