domingo, 11 de outubro de 2009

A Vida Intelectual, por Sertillanges - I

Lembro aos confrades que esta é uma obra eminentemente católica, dotada de um espírito religioso e temente a Deus. Eu mesmo não sou cristão, tampouco católico (em razão d’algumas divergências antropológicas que procuro resolver), mas admiro e glorifico o seu respeito à verdade, a sua filosofia, a sua postura e as suas realizações – como quem admira o seu melhor amigo, embora tenha ressalvas a lhe fazer. Portanto, aviso, desde já, que não suprimi os trechos contendo concepções claramente católicas, pois o meu objetivo aqui não é agradar nem desagradar a B ou a C, que dirá ser contrário à simbologia e à apologia cristã, já que a atesto plenamente na medida em que se apresenta como um belíssimo louvor à verdade.

Construí este blog com o intuito de divulgar tudo o que exprima as grandes verdades filosóficas, e vocês verão no próprio resumo abaixo que esta é uma postura plenamente de acordo com a vida intelectual responsável, o que com toda sinceridade busco seguir. Dito isto, às pessoas que se sintam de alguma forma ofendidas por considerarem que a vida intelectual deva prescindir de qualquer analogia com a filosofia católica ou com verdades de fé em geral, recomendo somente que estudem. Aliás, um ótimo começo seria a obra universal e magnífica que intitula este post.

Assim, prossigamos.

Baseei este resumo na edição inglesa The Intellectual Life, que contém uma introdução pelo padre James Schall. N’algumas citações eu lanço mão da versão em português que se encontra na internet, mas não a recomendo especialmente, pois ela contém diversos erros de tradução, além da inexplicável supressão de algumas partes importantes da obra original.


A introdução do padre James Schall nesta edição inglesa cita um dos tantos ditos sapientíssimos de Chesterton: “não há assuntos desinteressantes, somente pessoas desinteressadas”.

Alerta-nos ainda que não devemos esquecer jamais o fato de que uma vida intelectual também pode ser uma vida perigosa. Agostinho já nos ensinava que o mais corrupto dos vícios provém não da carne mas do espírito.

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O prefácio de Sertillanges

Segundo Sertillanges, quando o intelectual pensa corretamente, segue Deus passo a passo, mesmo que inconscientemente; ele não segue sua própria fantasia. Nada do que é pensado pela mente se encontra fora do real (recomendo ler meus posts sobre o argumento ontológico).

Todo trabalho intelectual começa por um momento de êxtase. Só depois, num segundo momento, é que a construção de idéias entra em cena. Possuimos como que duas memórias: a memória “fechada”, do dia-a-dia, e a memória “descobridora”, da inspiração.

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Sertillanges sobre a auto-descoberta.

Escutar a si mesmo envolve a mesma dificuldade de se escutar a Deus. O pensamento criativo, nosso verdadeiro self, só nos é revelado no silêncio d’alma, ou seja, na exclusão de pensamentos tolos que levem à indulgência, à distração pueril. No afastamento das sugestões que nossas paixões desordenadas vivem murmurando, nossas escolhas práticas e sociais também passam pelo momento de êxtase, longe do self ambicioso e passional. Acima de tudo, devemos nos submeter à verdade e ao seu veredito.

Os grandes homens não têm medo do que falam a respeito deles, pois, mesmo na solidão, sentem não estarem sozinhos. Esta é verdadeira humildade. Devemos nos regozijar no que nos foi dado, não no que está além de nosso poder.

Quando o mundo não gosta de você, ele se vinga de você; se acontece dele gostar de você, ainda assim ele se vinga, o corrompendo. O único recurso é trabalhar distante do mundo, tão indiferente de seus julgamentos quanto pronto para lhes servir”. (é melhor talvez que ele o rejeite)

Diante da superioridade dos outros, só há uma atitude honorável: ter orgulho. Nietzsche é quem dizia: “nunca ignore, nunca se recuse a enxergar o que pode ser pensado contra o seu próprio pensamento”. Ora, como ser duro consigo mesmo, tão favorável à auto-perfeição, sem um amor incondicional pela verdade, sem a devoção à verdade?

Sobre a investigação exageradamente abrangente, diz Sertillanges (e ele ainda retomará o assunto lá adiante):

A estrela à qual se olha por muito tempo e muito intensamente pode, por isso mesmo, cintilar cada vez mais hesitantemente até que desapareça do céu.

Sobre evitar a leitura rápida e o mergulho precoce num tema:

Mesmo ao custo do sofrer, a criação é um prazer; e, além da criação, a veneração de uma idéia assim que ela vier.

A razão não pode fazer tudo. Seu último passo é reconhecer suas limitações (Pascal). Se a razão ambiciona o mundo, a fé dá a ela a infinitude.

No seu prólogo, informa-nos Sertillanges, como um bom neo-tomista, que a base para sua obra é a famosa carta De Modo Studendi, d’autoria de São Tomás de Aquino, que expõe breves e sólidos conselhos para a vida de estudos.

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CAP. 1 – A VOCAÇÃO INTELECTUAL

I – O intelectual é um consagrado

A Vocação é diferente da simples leitura e expressão. A Vocação equivale a penetrar, a manter um esforço metódico, a buscar atingir a plenitude do desenvolvimento intelectual. A vida intelectual é muito recompensatória, mas exige um esforço inicial do qual poucos são capazes. O intelectual é como um atleta da mente.

A verdade só serve aos seus escravos

Confie sim no seu gosto pessoal, ressalta Sertillanges, pois o nosso perfil caracteriza e revela nossa Vocação. Toda vida de um homem individual está simbolizada em um momento característico da vida de Cristo.

Não prove infidelidade a Deus, ao seus irmãos e a si mesmo ao recusar um chamado sagrado.

Não entre na vida intelectual por ambição ou vaidade. A ambição ofende a verdade eterna ao subordiná-la a si.

Mas para aceitar o fim você também deve aceitar os meios. Querer possuir um bem sem pagar por ele é o desejo universal! (dos covardes e fracos) Quantos jovens com a pretensão de se tornarem trabalhadores não desperdiçam miseravelmente seu tempo, seu vigor, seu ideal! Ou não trabalham (não têm tempo!) ou trabalham mal, sem jamais saber para onde estão indo ou querem ir.

Só que o gênio é fruto de uma paciência organizada e inteligente. O gênio é a conjugação entre o ascetismo especial e a virtude heróica de cada dia, uma síntese que resulta no que Sertillanges chama de “solidão apaixonada”.

Se consentirem a esta dupla oferta, digo-lhes em nome de Deus da verdade para não perderem a coragem. (...) A liberdade apresenta armadilhas que as rigorosas obrigações podem nos ajudar a evitar.

O que é o amor pela sabedoria? Santo Tomás de Aquino, ao vislumbrar de longe a belíssima cidade de Paris, disse ao seu companheiro: “irmão, eu daria tudo aquilo pelo comentário de Crisóstomo sobre São Mateus”.

Sertillanges pergunta ao leitor jovem: você tem duas horas por dia, e pode abdicar delas e sofrer para aproveitá-las? Se sim, tenha fé. Se não, descanse na quietude da certeza.

Aprenda a utilizar este precioso tempo. Mergulhe todo dia da sua vida na fonte que sacia e renova sua sede. Vale um sacrifício extra, vale por ter a capacidade e a missão de levar mais homens à verdade. Sertillanges nos diz que, seguindo este curso, um dia teremos espaço entre as nobres mentes.

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II – O intelectual não permanece sozinho

Não importa o quão sozinho ele esteja materialmente, não deve ceder ao encanto do individualismo. O isolamento esteriliza e paraliza. Ao ser só uma alma, se deixa de ser um homem. Trabalhar o humano é trabalhar para o homem, para suas necessidades.

Um cristão ativo, ressalta Sertillanges, deve viver constantemente no universal, na história.

Toda verdade é prática; a mais aparentemente abstrata, a mais enclausurada, é também prática. Toda verdade é vida, direção, um caminho levando ao fim do homem.

Disse Jesus Cristo: “Sou o caminho, a verdade, a vida.” Somos parte de Jesus, seu legado em palavra.

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III – O Intelectual pertence ao seu tempo

Deus nos colocou em um determinado lugar e tempo. O nosso espírito deve ser insistente e corajoso, mas sem o mero diletantismo. Evitar o amor pelo passado, que não reconheça a presença de Deus. Ora, Deus não envelhece, todas as eras lhe pertencem.

Em especial sobre o séc. XX, diz Sertillanges (a 1ª edição do livro é da década de 30):

Estamos em um trem disparando à frente na velocidade máxima, sem sinalizações visíveis. O planeta não sabe para onde está indo.

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Cap. 2 – AS VIRTUDES DO INTELECTUAL CATÓLICO

I – As virtudes comuns

Não basta a inteligência, pra começo de conversa. É preciso estar em harmonia com seus princípios de caráter moral.

Não se confia em vendedores de jóias que vendam pérolas e que não usem nenhuma.

Toda força isolada em um todo equilibrado torna-se vítima de seus arredores. A vida é uma unidade. Como imagens de Deus, que é trinitário, somos ser, razão e amor.

Diga-me o que você ama, eu lhe direi o que você é.

A verdade visita aqueles que a amam virtuosamente. Por isso o homem de gênio intelectual que é mais completo em si mesmo já é um homem virtuoso. Num vislumbre de socratismo, diz Sertillanges que as raízes da verdade e da bondade estão no mesmo solo, se comunicam. Ao praticar a verdade conhecida, damos valor à verdade ainda desconhecida. Santo Tomás de Aquino é quem disse:

A virtude chamada verdade é uma certa verdade pela qual um homem em palavra e em ato mostra a si mesmo como ele é.

Não pensamos somente com a inteligência. O corpo também precisa estar bem cuidado, não devemos negligenciá-lo. Se Platão já afirmava que “pensamos com toda nossa alma”, Sertillanges diz que “pensamos com todo o nosso ser”. Assim, também devem as virtudes morais ser exercitadas. Controlar nossas paixões é despertar em nós mesmos o sentido do universal. A pureza da alma leva à pureza do pensamento. A moral está atada à verdade. Participar do universal é participar do Espírito Santo e ser levado até a Verdade.

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II – A virtude apropriada ao intelectual

Ser estudioso. Como diria Aristóteles, a virtude é o que se encontra no meio-termo entre dois extremos. Logo, entre a negligência e a vã curiosidade, há a estudiosidade.

O homem que entrega seu conhecimento à ambição deixa de ser um intelectual. Ele não deve deixar de cumprir com seus bons atos face à atividade intelectual, de outro modo, abalaria um próprio fundamento da verdade: a virtude. Já o homem que sacrifica os seus estudos a todas as atividades do dia-a-dia é só um diletante.

Dizia São Tomás em sua De Modu Studendi:

Altiora te ne quae sieris(não busque o que está alem do seu alcance)(...) Volo ut per rivolus, non statim, in mare eligas introire (quero que você decida ir ao mar pelas correntes, não diretamente a ele)

Sabemos que a natureza busca exceder os seus poderes, aperfeiçoar-se, e que o homem é quem nela mais aspira à perfeição. Mas não tenha pressa. Comece pelo começo, sem pular etapas.

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III – O espírito de oração

Oratione vacare non desinas (nunca desista de orar)
— São Tomás de Aquino

Todo estudo é um estudo da eternidade.
— Van Helmont

A ciência é o conhecimento das causas, dos elos. Por debaixo desta atividade, está a Verdade Suprema. Uma verdade particular é só um símbolo, um símbolo real, um “sacramento do absoluto”. O real é uma manifestação de Deus porque criado por Ele.

A inteligência só faz a sua parte por completo quando realiza uma função religiosa, isto é, quando venera a verdade suprema em suas aparências menores e dispersas.

Quando o estudo contempla inteligíveis fixos, torna-se um “estudo da eternidade”. Há verdades cuja comparação com as montanhas as torna efêmeras como a brisa.

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IV – A disciplina do corpo

A mente só pode comunicar através do corpo. Aristóteles já dizia que uma boa constituição corporal corresponde à nobreza da alma. Por isso, recomenda-nos Sertillanges que não desprezemos a ciência da higiene e da ergonomia, porque até elas enriquecerão a sua atividade filosófica.

Respire muito oxigênio. Trabalhe numa posição que dê liberdade para os pulmões e não comprima outros órgãos. Exercite-se. Descanse. Tenha cuidado com a alimentação. Não durma nem muito pouco nem em excesso. Exercite a sua sabedoria corporal, como já recomendava São Tomás.

O amigo do prazer é inimigo do seu corpo e depressa se torna inimigo da sua alma. A mortificação dos sentidos é requerida para o pensamento e só ela nos pode colocar naquele estado clarividente de que falava Gratry. Se obedecer à carne, estará a caminho de ser carne, quando deveria ser todo espírito.

Ora, por que Aquino era chamado de Doctor Angelicus? Será porque ele era dotado de asas? Não, mas porque nele tudo se subordinava ao pensamento genial e santo, porque ele era todo alma, “uma inteligência servida por órgãos” (e jamais o contrário).

Nos próximos dias, seguiremos com a exposição desta obra. Obrigado.

2 comentários:

  1. Muito bom o texto, ele será de grande ajuda para mim e para todos aqueles que tem interesse em estudar seriamente alguma coisa, continue o seu trabalho, obrigado.

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  2. Olá Renan,

    O link para o livro traduzido para o português está quebrado. Mas seria esta a versão: http://www.livrariasaraiva.com.br/produto/3079253 ?

    Pergunto pois acabei de adquirir a mesma, e fiquei preocupado com a questão sobre a omissão de trechos.

    Obrigado

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