quinta-feira, 15 de outubro de 2009

A Vida Intelectual, por Sertillanges - II

Sigamos o resumo sistemático desta magnífica obra.

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Cap. 3 – A ORGANIZAÇÃO DA VIDA

I – Simplificar

Organize sua vida material, não sobrecarregue uma caminhada que já é por si só tão difícil. Simplifique a sua vida.

A vida mundana é fatal para o estudo. A ostentação e a dissipação da mente são inimigos mortais do pensamento.

Obedeça a si mesmo, não aos meros costumes. A vocação não se dá sem a concentração. Seus gastos e sua atenção seriam muito melhor aproveitados na coleção de uma biblioteca particular, numa viagem instrutiva ou em feriados para se descansar, ouvir música, etc.

Em seguida, Sertillanges discorre sobre o importante papel que tem a esposa de um intelectual nestes cuidados – em um trecho que provavelmente arrepiaria os cabelos das “mulheres modernas”. A mulher, segundo ele, deve colaborar, evitando levar o marido às trivialidades que não possuam conexão com as aspirações intelectuais. Ela deve ter compreensão, acima de tudo.

Depois do esforço do trabalho, o homem é como que um soldado ferido; precisa ser cercado de carinho e quietude (...) Seja como uma mãe para ele. Isso lhe dará novas forças e o manterá vivo para novas batalhas.

Sobre as crianças, diz Sertillanges que elas de fato tomam muito do nosso tempo, especialmente quando pequenas, por outro lado, elas é que são capazes de elevar a nossa inspiração com a sua alegria e sua inocência, defendendo-nos do “reino do abstrato”. Elas são a imagem do futuro e um motivo de esperança.

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II – Solidão

A solidão é importantíssima, como São Tomás de Aquino já destacava:

Mostra-te amável para com todos [mas] não sejais muito familiar com ninguém, porque a demasiada familiaridade gera o desprezo e dá matéria a muitas distrações.

A célula monástica é como um símbolo desta postura. Todas as grandes obras da humanidade foram preparadas no deserto, incluindo a Redenção do mundo. O próprio fiat lux divino surgiu de um imenso e solene vazio. Afirma Sertillanges:

O retiro é o laboratório do espírito. A solidão interior e o silêncio são as suas duas asas.

Na multidão, o homem perde a sua identidade. Tomás de Kempis dizia em sua Imitation: “I have never hone amongst men without coming back less a man”.

“Como te chamas?” “Legião” – eis a resposta do espírito disperso e dissipado na vida exterior.

Como sempre, os excessos são prejudiciais. Quem se une a Deus mas não aos seus irmãos é um mentiroso, um falso místico, um falso pensador. Quem se une aos homens e à natureza sem estar unido com Deus – sem amar o silêncio e a solidão – é somente um sujeito do mundo, de um “reino de morte”.

Sertillanges reitera: ao decidirmos procurar a Verdade, fizemos uma escolha muito importante; devemos ser fiéis a ela e a nós mesmos.

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III – A cooperação com seus iguais

Recomenda ele que se busque a associação de mentes, coisa tão difícil nesta era de individualismo e anarquia social. Se as antigas oficinas e guildas eram uma reunião de amigos, uma família, hoje as associações são como uma masmorra, uma reunião estritamente formal.

Ter a força para a empreitada agindo sozinho é duríssimo. Começa-se com entusiasmo, e então, assim que alguma dificuldade surge, o demônio da preguiça sussura ao ouvido.

Contar com o apoio de outros que trilhem o mesmo caminho, seguir os bons exemplos, manter a troca de idéias, são sempre atitudes eficazes.

A amizade é uma arte obstétrica; utiliza nossos mais ricos e profundos recursos; abre as asas de nossos sonhos e obscuros pensamentos; ela serve como fiscal de nossos julgamentos, testa nossas novas idéias, mantém o nosso ardor e inflama o nosso entusiasmo.

A amizade, como já ensinava Aristóteles, é a união de espírito.

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IV – O cultivo de contatos necessários

Como já dito, solidão não significa negligência de responsabilidades. Certos contatos são necessários, parte de nossa vida.

Faça o que deve e o que for preciso; se a sua humanidade exigir, as diferentes demandas que ela fizer irão encontrar seu próprio equilíbrio. O Bem, que é irmão da Verdade, ajudará a sua irmã.

Devemos nos mover na riqueza para contemplá-la, não nos afastarmos dela. Solidão demais empobrece a vida. Mesmo um escritor prolífico não deve se trancafiar, ora, nem os monges se trancafiam. O homem muito isolado se cria tímido, abstraído, até um pouco excêntrico. Ele olha para as pessoas como se elas fossem uma proposição a entrar num silogismo, ou um exemplo para ser anotado num bloco de notas.

Por outro lado, referindo-se mais uma vez à mulher do intelectual, diz Sertillanges que a ela não deve abrir a porta da casa para qualquer um. Deve-se estimar a presença dos sábios, não dos “espertos”, dos “gênios”. O casal deve buscar se afastar da frivolidade e da vaidade. Mesmo os tolos têm lá o seu papel, mas não é preciso sair à procura deles, pois que existem aos montes por aí.

Por fim, devemos ser moderados nas conversas:

O valor de uma alma se mede pela abundância do que ela não expressa.

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V – Conservar a dose necessária de ação

Como dito acima, encontrar o equilíbrio correto entre a vida interior e a vida externa, entre o silêncio e o som, porque “o pensamento e a ação têm o mesmo pai”.

O homem que concentra todos os seus poderes no pensamento perde facilmente o seu equilíbrio. Uma diversão é indispensável para a vida mental; precisamos do efeito tranqüilizador da ação.

À força de cultivar o silêncio, corre-se o risco de chegar ao silêncio de morte.

Não só de livros devemos nos alimentar, mas também de fatos concretos. Para Sertillanges, as idéias estão nos fatos, e não vivem por si em uma realidade separada, como pensava Platão. As idéias estão plantadas no solo do real, bem mostrou Aristóteles. Quanta experiências a vida nos oferece todos os dias? Um profundo pensador tira proveito delas.

A idéia em nós desprovida de seus fantasmas (designação escolástica-aristotélica para os resíduos do real deixados em nossa imaginação e que servem de insumo para nossas abstrações) é só um conceito vazio. Onde tivermos mais fantasmas, mais completo e vigoroso será o pensamento.

Recortes da vida + idéias abstratas = idéias concretas

Se você ainda não se vê tomado de exigências intelectuais, busque por causas que o inspirem, que valham a pena. Busque a luz, a reabilitação, a preservação, o progresso, o bem público, enfim. Que as suas causas não demandem toda a sua vida, mas pelo menos todo o seu sujeito, e o “paraíso que se abrirá para você será ainda mais amável, porque você terá provado tanto os tesouros quanto os perigos e os caminhos sinuosos da terra”.

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VI – A preservação do silêncio interior

O espírito do silêncio deve invadir toda a vida. O estado da solidão é a mãe dos resultados; não a solidão em si. Tanto é que Sertillanges, bem diz, pode conceber uma vida intelectual baseada em duas horas por dia de estudos.

De todo modo, devemos ser integralmente intelectuais, o tempo todo, nos submeter sempre à verdade, à Deus. Assim, nos elevaremos acima das coisas ao invés de nos afastarmos delas.

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Cap. 4 – O TEMPO DE TRABALHO

I – O trabalho permanente

Conforme Sertillange,s o Evangelho nos diz que a oração deve ser ininterrupta.

A oração é a expressão de desejo, seu valor vem de nossas aspirações interiores (...) Remova o desejo, a oração termina, altere-o, a oração se modifica, aumente ou diminua sua intensidade, a oração se eleva ou perde suas asas.

Mesmo que não expressemos os nossos desejos, o puro desejo garante a verdade da oração. Para Sertillanges, o orar é como um querer mais, uma vontade de poder transcendente do espírito, o desejar de coisas eternas (aquilo que Nietzsche chamava de mehrwollen). Ora, o estudo, em seu desejo pelo conhecimento, é como uma oração ativa.

Se os mais dos homens se deixam prender por desejos errôneos, o pensador é obsidiado pelo desejo de saber; porque o não utilizará, aproveitando-o como se aproveita um curso de água para mover uma turbina?

Diz São Tomás: “Empenha-te em encerrar no cofre do espírito tudo quanto puderes, como quem pretende encher um vaso”.

Mantenha o seu espírito alerta. A verdade está em todas as partes, nas ruas, nas conversas, nos teatros, nas idéias, nas visitas, nas andanças, nos livros mais comuns. Toda contemplação permite uma reflexão mínima, “toda captação de luz pode levar ao sol; toda estrada aberta é um corredor para Deus”.

Como disse Lamennais em Saint-Malo, diante do mar durante uma tempestade, “todo mundo enxerga o que eu estou enxergando, mas ninguém vê o que eu vejo”.

Aprenda a ver.

Um pensador é como um filtro, no qual as verdades quando por ele passam deixam a sua melhor substância.

Aprenda a ouvir.

Um peão em certos momentos é mais sábio do que um filósofo. [ou como disse o grande São Tomás de Aquino: uma velhinha com fé, de certa forma, sabe mais do que Aristóteles]

O pensador mantém durante toda a sua vida a curiosidade da infância, retém a sua vivacidade de impressão, a sua tendência em ver tudo sob um aspecto de mistério. O pensador se impressiona com o mundo e o admira para todo o sempre.

Sobre os grandes gênios, Sertillanges ressalta que eles não o são considerados até depois de sua morte. A maioria das pessoas não os reconhece, não os vê, não os ouve. O gênio está à frente de seu tempo, essa é propriamente a sua definição.

As grandes descobertas são só reflexões sobre fatos comuns a todos. (...) O que é o conhecimento, senão a cura lenta e gradual de nossa cegueira?

Sertillanges reprova o dualismo espiritual, q ue divide o homem entre a alma esforçada e focada e a alma indolente do cotidiano (um erro que domina o famoso livro da década de 30 de Dorothe Brande sobre como viver a vida de escritor). Não há necessidade alguma de tensão dentro de nossas almas. O que se deve fazer é pôr um controle no imenso recurso da mente. Não há esse desgaste mental que as pessoas imaginam; há um trabalho imprevisível por parte do cérebro – as idéias “pipocam”, qualquer um pode experimentar isso.

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II – O trabalho noturno

Père Gratry nos diz que não devíamos excluir de nossos estudos as horas de letargia e escuridão. Dormir é relaxar uma tensão, é entregar-se à natureza por um momento, como um pequeno abandono do livre-arbítrio individual e uma disposição total ao jogo das forças cósmicas, que permite uma reconfiguração interna em nossas almas. Tirar proveito deste processo é um ótimo recurso para o pensador. Não podemos ser como corujas; lembremo-nos que respeitar e cuidar do corpo é um dos fundamentos da saudável vida intelectual. O sono não é um problema nem um princípio, ele serve ao corpo e à alma.

Idéias novas, caminhos inéditos, todos podem despertar de manhã junto com você. Sertillanges recomenda que se tenha sempre à mão um bloco ou caderno. Faça uma anotação sem ter acordado completamente, se possível, sem mesmo ligar a luz, e então volte para as sombras. Descreva este distinto universo da semi-consciência.

Todo pensador passa por estes surpreendentes e muitas vezes miraculosos momentos de “lucidez matutina”. Muitos tratados, invenções e resoluções vieram destes momentos.

Anote sempre. Escreva enquanto a idéia estiver viva, não adicione nada por sua conta. Escreva do jeito que ela vier, não se preocupe com o estilo e a retórica – embora um estilo precioso possa aparecer involuntariamente.

Desta forma, você tira proveito das vinte e quatro horas do seu dia, garante Sertillanges. Lembremos que o sono age sobre o material já existente; ele não cria nada por si. Assim como o trabalho gentil e regular pode trazer harmonia ao dia, o trabalho inconsciente da noite pode trazer paz e manter as imaginações vagando em nossa mente. Como diz Sertillanges, “a noite dá conselhos. O descanso não é a morte; é a vida, e toda vida rende frutos”.

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III – As manhãs e os serões

A manhã é sagrada, diz Sertillanges. Nossa alma, renovada, vislumbra o seu futuro. É o momento de confirmar nossas vocação como homem e como intelectual.

Acordar de manhã deve ser como emergir das horas profundas de inconsciência, renovado e passando os olhos pelo horizonte da vida. Deveríamos ouvir a nossa própria voz, que possui grande poder de auto-sugestão. Não negligenciar este “escravo” – ele é você, e “a sua própria voz chega com a estranha dominação de quem é ao mesmo tempo igual e diferente”.

Père Gratry sugere ao intelectual cristão a oração Prima pela manhã e a Completa à noite. São orações “completas e doces” segundo Sertillanges, onde está toda a verdadeira natureza e vida. Recomenda o “pai nosso” para pedir o pão e a comida para alimentar a inteligência, e a Ave Maria dirigida à “Mulher vestida com o sol, vitoriosa sobre o erro e sobre o mal”.

Preconizamos o espírito de oração: onde poderá ele nutrir-se melhor do que nas contemplações matinais, quando o espírito repousado, ainda não preso pelas preocupações do dia, levado, erguido nas asas da oração, sobe facilmente aos mananciais da verdade que o estudo dificilmente capta?

Tenha fé, vigor d’alma e coragem logo de manhã, diz Sertillanges, e o resto do seu dia será tomado pelo brilho de tal postura. Ao cair da noite, antes da luz se extingüir, haverá a esperança, como a esperança que temos antes da última hora do Ano Novo.

A noite é muito desperdiçada, muito pouco aproveitada. Os homens comuns, trabalhadores, utilizam-na para “relaxar” para o sono.

Sim, relaxados como o violino cujas cordas se tivessem distendido totalmente. Que trabalhos no dia seguinte, para tornar a afiná-las!

Para o intelectual, sua noite deve ser um momento de quietude, sua ceia uma leve refeição, sua diversão a simples tarefa de ajustar o trabalho do dia e preparar o de amanhã. Não se encontra descanso na dispersão de energia. Há na noite bem aproveitada um verdadeiro duplo descanso – espiritual e físico. Interessante notar como algumas pessoas no sono inconscientemente assumem a posição fetal; isto é um símbolo do sono como um retorno às nossas origens!

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IV – Os momentos de plenitude

Tratemos aqui do trabalho intelectual em si mesmo.

Estude, diz Sertillanges, pondere sobre sua vida. Quais as melhores horas? Qual o melhor turno? Se dispuser de poucas horas e puder situá-las livremente, dê preferência à manhã, mas isso pode variar de acordo com cada um. Ao escolher o horário de estudo, planeje-se.

Será preciso tudo prever para que nada venha obstruir, dissipar, reduzir ou enfraquecer tão preciosa duração. Se quiser que seja uma hora de plenitude, comece por excluir as preparações longínquas; tome todas as disposições úteis; saiba o que quer fazer e a maneira de o fazer; junte os materiais, as notas, os livros; não se incomode com ninharias.

Levante-se pontualmente e imediatamente, tome um café da manhã leve, evite conversações fúteis, ligações inúteis, limite a sua correspondência para o que for estritamente necessário, esqueça os jornais. Todas estas recomendações servem para as horas mais intensas de estudo. O grande objetivo é utilizar o tempo a seu máximo valor. Além disso, o semi-trabalho não é bom nem para o descanso e nem para o próprio trabalho. Devemos ter energia, ser insistentes.

Faça alguma coisa ou não faça nada. O que decidir fazer, faça ardentemente; faça-o com afinco, de modo que toda a sua atividade seja uma série de vigorosos novos começos.

Renovemos o que Sertillanges chamou de “o espírito de oração”, mantendo-nos no estado da eternidade, mente e coração obedecendo sempre à verdade, admirando-a com a plenitude da alma, ouvindo a harmonia da natureza, como Cipião em seu sonho contado por Cícero.

Você deve assegurar-se de que não será perturbado nas suas horas sagradas. A segurança leva à intensidade e à produção intelectual. Como diz Sertillanges, mantenhamos “um cerberus na porta”, pois “cada demanda de você vinda de fora é uma perda de energia interna e pode custar à sua mente alguma preciosa descoberta”. Como disse Emerson em seus Poems: “when half-gods go, the gods arrive”.

A solidão não precisa ser física, ressalta. Um outro intelectual fazendo-lhe companhia é até um reforço, emulando a atmosfera das bibliotecas na busca pela verdade. De todo modo, quando conseguir a solidão das inutilidades do mundo, defenda-a a todo custo. Você é um servo da verdade, e não do mundo.

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No próximo post, exporemos os capítulos de Sertillanges sobre o escopo, o espírito e a preparação do trabalho intelectual.

Um comentário:

  1. Caro Renan,

    onde está "I have never hone..." seria "never gone", não?

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