domingo, 20 de setembro de 2009

O argumento ontológico e as provas de Duns Scotus

Já tratamos acerca do argumento ontológico de Santo Anselmo, de alguns de seus opositores históricos e da pertinente apreciação que lhe faz Mário Ferreira dos Santos. Agora, apresentaremos um resumo da leitura do filósofo brasileiro sobre como o escolástico Duns Scotus tira proveita do argumento anselmiano para construir suas provas da existência de Deus, do ser infinito.


Ao começar a sua exposição das provas escotistas, Mário reafirma a noção dos escolásticos e do islâmico Avicenna de que o objeto primeiro do conhecimento é o Ser (a Unidade, o Um).

Diz Mário na página 152 do Homem Perante o Infinito:

Não há nenhuma objeção normal à existência do Ser, porque não aceitá-lo seria afirmar o nada absoluto, o qual já estaria negado pela própria afirmação que dele se fizesse.


Ora, tal nada mais é do que uma reafirmação de um argumento tradicionalíssimo, que vem desde Parmênides, um dos avôs da Filosofia. Abaixo, exponho duas das passagens mais importantes da história do pensamento ocidental (tradução minha a partir de uma tradução inglesa):

Fragments, VIII, 1-12:

Só resta um caminho, que é dizer que [o ser] é (estin).
Nele há vários sinais de que o que é, é incriado (ageneton) e indestrutível (anolethron),
pois é completo (oulomeles) , imóvel (atremes) e sem fim (ateleston).
Nem nunca foi, nem nunca será; pois é agora, todo de uma vez, um contínuo. (nun estin homou pan en, hen, syneches)

Pois que tipo de geração você lhe buscaria? De que forma e de onde ele teria surgido?
Não permitirei que diga nem que pense que ele veio do que não é (me eontos); pois o que não é (ouk esti) não pode ser nem expresso nem pensado. Que necessidade também haveria dele surgir antes ou depois, se procede do nada (ek medenos)?
Desta forma, ele deve ser completamente (pampan) ou não ser.

Fragments, VIII, 19-24

(...)como poderia [o ser] vir a ser (to eon)? Se viesse a ser,
não é, nem é se o será no futuro.
Portanto o vir-a-ser (genesis) é extinto e a destruição (olethros) ignorada.
Nem [o ser] é divisível (diaipeton), pois é todo um só (homoion),
e nem é mais [aqui], pois impediria que fosse coeso (synechesthai),
nem é menos [ali], mas é pleno de ser (empleon estin eontos)

http://philoctetes.free.fr/parmenides.pdf


Insiro aqui também o comentário de um filósofo italiano, Domenico Pacitti, pois o achei mais pertinente do que qualquer comentário que eu fosse fazer (tradução e grifos meus):

O argumento, então, é sublime em sua simplicidade: somente o ser é, pois não-ser não pode ser. O ser é portanto um: a existência colateral do não-ser significaria dois, de onde uma infinitude de divisões teria então surgido. Agora, uma vez que o que pode ser pensado e o que pode ser é a mesma coisa, qualquer pensamento da coisa que não é será impossível. Pois um pensamento daquilo que não é será um pensamento de nada, e por isso nem será um pensamento.

Ou como aponta Mário Ferreira: “só podemos conhecer o que é possível de tornar-se um; melhor diríamos, o que é alguma coisa”.


Mais adiante, o filósofo brasileiro ressalta que a única coisa não evidente a respeito do Ser é a de que ele seja infinito, e é justamente esta questão que mobiliza os teólogos.

Francisco Suárez (renomadíssimo pensador da escolástica tardia), por exemplo, afirma: há alguma coisa, e esse alguma coisa é ser, tem aptidão para existir, incluindo o ser atual, que se revela evidentemente, e o ser potencial, que não existiu mas teve aptidão para existir (como o filho de Napoleão, por exemplo). O ser potencial não é, assim, um puro nada, e tal noção mostra-se consonante à tradição que começou em Parmênides, embora sob um novo aspecto (trataremos mais disso em um post futuro).

Esta exposição é mais do que necessária para compreendermos satisfatoriamente o pensamento de Duns Scotus. Como o próprio Mário faz questão de sublinhar, é impossível uma discussão apropriada da questão sem uma familiaridade mínima com os fundamentos da metafísica que alicerçam a construção filosófica do Doctor Subtilis (cognome derivado, aliás, da sutileza e peculiaridade do pensamento escotista, de acesso muito mais difícil do que o tomista).


Mas, então, o que é o ser infinito para Duns Scotus?

Ora, como já bem demonstramos, o ser infinito não pode ser entendido extensivamente, mas como o ser em sua intensidade mais absoluta.

ser finito = ser contingente = dependente de outro para ser

O ser finito tende para o extrínseco e para a sua finalidade intrínseca, ele “busca perfeições que lhe faltam”, mergulha-se num eterno “querer mais”. Já o ser infinito é um ser perfeito, mais do que isso, oniperfeito, é o ser enquanto ser (e nada mais) de Aristóteles.


O que propõe Scotus é uma via ascensional ontológica, partindo do “ser comum” para chegar ao ser infinito. É evidente, afirma Mário, que, dentre as coisas que conhecemos, há coisas criadas e há coisas incriadas (pois, lembremos, nada advém do nada).

Criadas (por outra) – possíveis, finitas, ab alio

Incriadas (de per si) – necessárias, infinitas, a se

Fica muito claro, assim, que a prova escotista funda-se no princípio da causalidade – um tanto diferente do modo tomista, mas corroborando as suas vias.


Há quem objete contra à prova da causalidade ao admitir uma infinidade de causas. Bem, contra tais objeções, Scotus busca provar três proposições que colocariam a pá de cal sobre a questão. Vamos a elas:

1) Que é impossível uma infinidade de causas essencialmente ordenadas

Se não houvesse uma causa primeira, as causas seriam infinitas. Bem, o infinito numérico, quantitativo, só existe em potência. Ademais, admitida a infinitude causal, não se poderia falar em anteriores e posteriores. Não bastasse isso, a causa desta causalidade infinita seria ainda a primeira e mais perfeita.

2) Que é impossível uma infinidade de causas acidentalmente ordenadas

A causa acidental não suprime a causa primeira. De algum lugar deve ter-se originado a causa acidental primeira ou “primeiras”. Do contrário, teríamos que lidar novamente com o absurdo de causas infinitas.

3) Que mesmo negada toda ordem essencial, a regressão ao infinito segue sendo impossível

O primeiro ser efetivo é existente em ato, pois ele existe por si mesmo. Voltando a Parmênides; um não-ser não pode criar e muito menos criar-se ser.

Alguns acusam esta terceira prova de apriorística. Será mesmo?

Perguntemo-nos: é possível um ser por outrem? Ora, tal é evidente pela experiência. E é possível um ser por si? Se é possível, existe em si mesmo. Se não, voltamos à série infinita de causação. Trata-se, portanto, de uma conclusão plenamente inteligida, a fortiori.


Agora concentremo-nos nas observações mais peculiares de Mário Ferreira sobre o Doutor Sutil.

Segundo ele, Duns Scotus era ao mesmo tempo platônico, avicenista e pitagórico, além de ter aproveitado conceitos da Física de Aristóteles. Lembremo-nos que, para Mário, os pitagóricos teriam sido os verdadeiros grandes pioneiros do conhecimento científico, porquanto eles já afirmarem que a verdade máxima está nos entes necessários.

Tal tradição trespassou a filosofia grega e chegou até os escolásticos, que então se tornaram os responsáveis pela matematização qualitativa do conhecimento, ou seja, não aquela matematização grosseira dos modernos, mas uma matematização "responsável", concreta. Ao contrário destes, jamais os escolásticos perderam a noção de que o conhecimento não é só quantitativo, mas também qualitativo, axiológico, valorativo. Para eles, a quantificação da lógica mostra-se claramente um equívoco, pois o raciocínio tem sutilezas.

Diz Mário nas páginas 162 e 163(grifos meus):

Todas as idéias físicas poderão ser construídas, mas, qualquer que seja o conhecimento, haverá sempre a distinção entre determinante e determinado, entre produzível e produtivo, entre effectibilitas e effectivitas, etc. É trabalhando com tais conceitos, estruturas ontológicas da mathesis [a instrução suprema pitagórica, que nos levaria da esquemática humana às estruturas primeiras da realidade], que Duns Scotus procura construir, e com grande êxito, as suas provas, que se fundamentariam, assim, ontologicamente, de modo necessário e não apenas contingente.


Mário é muito feliz ao resumir a diferença nos tratamentos clássicos da causa primeira: as provas aristotélicas e aquinianas querem provar que “há um motor que é primeiro” e as provas escotistas querem provar (e o fazem) que “há um primeiro que é motor”. A tradição aristotélica de Averroes e Aquino afirma que cabe à física, à natureza, provar a existência de Deus. A tradição anselmiana (e parmenidiana, por que não?) afirma que tal tarefa cabe à Metafísica. Para Duns Scotus, a infinidade de poder e movimento do motor aristotélico não pode provar a infinidade pura e simples do Deus cristão.

Em Aristóteles, temos um ser de infinidade extensiva.

Em Duns Scotus, temos um ser de infinidade intensiva.


O que Duns Scotus faz então é redefinir o argumento de Santo Anselmo, o confirmando. Nas palavras de Mário (p. 166):

Para Duns Scotus, o ser é conhecido por si, e a infinidade não lhe é contraditória, pois é perfeitamente inteligível. Há, portanto, compatibilidade entre a infinidade e o ser, e se a infinidade é uma perfeição possível, o ser supremo é necessariamente infinito.

Ou seja, o que está na mente está no Ser. É “aquele que não podemos conceber outro maior”, como diz Santo Anselmo. Nada pensado pela mente pode ultrapassar o ser.

Ao meu ver, irrefutável.

diagrama_anselmo

2 comentários:

  1. É possível eu me pôr como seguidor do seu blog? Gostei bastante dele. Apesar de eu tratar de assuntos muito cais comezinhos, gostaria também de receber a sua visita em meu blog http://observatoriodepiratininga.blogspot.com
    Parabéns pelo trabalho!

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  2. Agradeço a visita e o comentário, amigo. Dei uma passada no seu blog agora e também me pareceu muito interessante, mais uma voz contra essa turba esquerdista brasileira.

    Pode seguir sim, é claro.

    Abraço, e obrigado.

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