sábado, 8 de maio de 2010

Trivium – As Artes Liberais da Lógica, Gramática e Retórica, parte I




Começamos agora um resumo muito esperado, o qual, confesso, foi para mim o mais agradável de empreender.

Desde a infância, somos, neste mundo atual, formados dentro de um esquema peculiar de aprendizagem que jamais é questionado. A única coisa que se disputa é o quanto dessa pretensa educação deve ser empregada aqui e acolá, o quanto de investimento deve ser empregado no uso dessa idealização, desse monstro abstrato, que por tantas vezes surge na boca da opinião comum – e, pior, mesmo no discurso de ditos “intelectuais” – como a solução para todos os problemas da humanidade. Dessa fantasiosa panacéia nem mesmo podemos dizer que seja um placebo; ela é sim um veneno, propriamente uma das principais responsáveis pela enfermidade do pensamento humano e por todos os males culturais, sociais e até materiais que daí decorrem. É anteposta a essa situação que a retomada dos estudos sobre o Trivium surge verdadeiramente como um respiro, um sopro de vida sobre a natureza morta da cultura moderna.

Ora, como uma pessoa sugere soluções sem defini-las? Como alguém ousa defender uma causa sem contemplar sobre ela? Por que esses discursos etéreos, como “falta é educação pro povo”, tornam-se premissas inquestionáveis desde a conversa de bar até as teses de doutorado, por mais genéricas, insondadas e obscuras que sejam? Tais respostas exigem um estudo à parte, e, graças a Deus, há cada vez mais pessoas dedicadas a entender o porquê dessa recusa moderna ao exercício genuinamente filosófico. Basta dizer, por ora, e com proveito à nossa introdução, que essa doença provém da mesma raiz que germina o desdém e a difamação que cobrem de trevas um dos períodos mais brilhantes do pensamento humano: a Idade Média. É o que lamenta o introdutor da excelente (e pertinentíssima) edição brasileira, José Monir Nasser:
“O desprezo da ‘intelectualidade nacional pelos assuntos da Idade Média é razão da esquelética oferta por aqui de obras escolásticas, comparadas por Erwin Panofsky às próprias catedrais góticas.”
Ainda na metade do século XX, testemunhando a notável queda do ensino mundial, o padre austríaco Ivan Illich chegou a propor uma sociedade sem escolas, porque já percebia que o “sistema de ensino” não quer realmente educar, mas distribuir socialmente os indivíduos. Hoje proliferam os modismos politicamente corretos, as “escolas cidadãs”, os sistemas áridos e robóticos de “educação”. Se as armações dos edifícios escolares modernos estão cada vez mais definidas, ninguém sabe exatamente com o que preenchê-las. Conceber a educação como um “sistema” não se sustenta nem mesmo na metáfora. A educação é uma atividade emergente e orgânica, ainda que, é claro, sempre necessariamente bem fundada. Para poder de fato exercer a sua liberdade genuinamente humana, o espírito precisa do terreno firme. É típico da modernidade prestar mais contas a um burocrata da educação do que aos conselhos de Aristóteles, de Agostinho, de Tomás de Aquino. Lembremos que onde não há memória, também não há inteligência – uma lição platônica e aristotélica que as aulas liberais da Idade Média não cansavam de ensinar.

Mas sempre há esperança, amigos. Cabe a todos que compreendem a calamidade da situação buscar investigar esses assuntos e, mais do que tudo, divulgar a feliz redescoberta de tesouros como o Trivium. Se depois de todas as intempéries da História eles ainda resistem é porque, encravados na rocha da tradição e da Verdade, também hão de resistir aos nossos tempestuosos dias, e quem sabe no futuro repontem como os verdadeiros instrumentos para a elevação do espírito humano. De toda forma, é melhor esquecermos as soluções fáceis. Há certas mudanças que podem nos exigir decádas, ou mesmo séculos, e devemos estar prontos pra isso. O importante é desde já fazer a sua parte.

Dito isto, voltemos nossa atenção para os estudos.


A história das artes liberais

Após a queda do Império Romano, a cultura clássica quase desapareceu. Por muito tempo, somente o formidável esforço dos monges copistas é que garantiu a manutenção de algum legado representativo. No campo intelectual, os primeiros e complicados séculos da Idade Média foram uma tentativa de retomar o prumo dos grandes estudos místicos e filosóficos da Antigüidade. Recuperada certa solidez, seria hora de reunir, do que havia restado, as melhores soluções para se construir um edifício cultural que fizesse jus à glória greco-romana, e que até mesmo a superasse. Santo Agostinho já tentara com seu Doutrina Cristã uma espécie de iniciação intelectual nas escrituras. Após ele, Boécio, grande transmissor da lógica, gramática e retórica aristotélicas (a base do Trivium), também se dedicou a elaborar um projeto pedagógico que salvasse os bárbaros da escuridão, e, logo após ele, ainda encontramos Isidoro de Sevilha imerso nessa difícil empreitada.

No ano de 800, enfim as conjunturas se alinham para que tantos esforços comecem a dar seus frutos. Alavanca-se o Império Carolíngio e, com ele, a primeira grande tentativa concreta de fundar o ensino sobre os pilares de Pitágoras, Platão, Aristóteles, Agostinho, Boécio e outros. Homem de nenhum brilho intelectual, Carlos Magno conhecia tanto a importância da elevação cultural para seu reino e para a Cristandade que chega a “importar” sábios e educadores de diferentes partes da Europa, já que não encontrara nenhum na sua própria terra – atitude similar à de Alfredo, o Grande, um século depois, e impensável nas burocracias estatais de hoje. A escola palatina, já surgida com os merovíngios, se desenvolverá enormemente, vindo a ser a precursora genuína das universidades que nasceriam por toda a Europa na virada do milênio. Alcuíno, monge inglês egresso da escola de Canterbury, era o grande homem de confiança de Magno. Suas obras didáticas e seus diálogos se baseavam inteiramente em autores do legado clássico. Utilizava Cícero em aulas de Retórica e transmitia também ensinamentos de Donato, Prisciano, Cassiodoro, Boécio, São Isidoro e Beda. Escritor quase insignificante, foi contudo um grande mestre, doutrinando figuras destacadas do Renascimento Carolíngio, como Rabano Mauro. Além disso, Alcuíno enriqueceu a biblioteca de Tours com cópias de manuscritos vindos de York (a maior biblioteca ocidental da época) e tratou de aprimorar a própria técnica da cópia, refreando a corrupção dos textos, o que viria a ser mais uma importantíssima contribuição para a educação liberal.

As outras escolas e bibliotecas anexadas aos monastérios já não eram mais destinadas somente à ordem religiosa e aos seus “convertíveis”, o ensino das scholae exteriora apresentando-se a todos que desejassem aprender. Naturalmente, o gosto pelo aprimoramento intelectual se espalhou por muitas regiões, e a elevação da cultura européia foi inevitável, culminando na grandiosa Escolástica, entre diversas outras realizações.

O currículo então utilizado, como não poderia deixar de ser, fundava-se nas Sete Artes Liberais, com a adição dos estudos de exegese bíblica e de Teologia, disciplina ainda incipiente à época. Vinculadas a conhecimentos terrenos tradicionais, essas artes apresentavam grande simetria e inclusive uma formidável sinestesia (veja as relações que tece Dante entre as disciplinas e os astros, por exemplo).

O estudante antigo das artes começava a vida escolar aos quatorze anos. Em um regime de estudo livre, os “três caminhos” do Trivium representavam para Abelardo os três componentes da ciência da linguagem. A Dialética passou a ser chamada de Lógica após o séc. XII com a redescoberta de grande parte da obra de Aristóteles no Ocidente. Aos vinte anos, já tendo absorvido também o Quadrivium, se o estudante pudesse e tivesse vontade, poderia seguir para o estudo de Teologia, Direito ou Medicina nas universidades. Profissões artesanais, como a construção civil, não eram liberais, mas associadas a corporações de ofício – às vezes com conotações iniciáticas, como os maçons. Como explica José Monir Nasser, ainda na introdução:
Este é o sentido da palavra “liberal” (de liber, livre) nas Sete Artes “liberais” da Idade Média, que eram ensinadas ao homem livre, por oposição às artes “iliberais”, ensinadas ao homem “preso”, controlado por guildas.
A Gramática assegurava que todos falassem a mesma coisa, a Dialética conduzia o disputatio e a Lógica era o antídoto contra a verborragia (fumus sine flama).
Trivium – espírito
Quadrivium – matéria

Dizia Honório de Autun (1080-1156):
O exílio do homem é a ignorância, sua pátria a ciência (...) e chega-se a esta pátria através das artes liberais, que são igualmente cidades-etapas”.
Infelizmente, o sistema tradicional começou a ruir já no séc. XIV, minado lentamente pelo “humanismo” até o Renascimento. Jean Amos Comenius (1592-1670) compôs a Magna Didactica, onde não só fazia pouco caso das sete artes como estabelecia novas bases para a educação, que perdurariam nas pedagogias modernas. Segundo Nasser, são as primeiras sementes do triunfalismo, do epicurismo, da massificação do ensino, da uniformização do conteúdo, da automatização da aprendizagem, etc. (mesmo assim, talvez ainda falte uma explicação mais fundamental sobre o porquê da derrocada das sete artes, tão populares que eram até os tempos de Shakespeare)

(Curiosamente, o título de Master of Arts (MA) ainda existe nominalmente em qualquer faculdade americana. Bachelor of Arts é o título de diploma em universidade. Master of Arts é o de direito de lecionar – no passado equivalia ao doutorado nos EUA. Em alguns locais ainda o é. Contudo, há uma tendência vinda da Alemanha em tornar o MA um intermediário para o PHD, substituindo a tradição inglesa.)

Nasser ainda nos conta que o filósofo americano Mortimer Adler – responsável, entre outras coisas, pela histórica e coleção The Great Books of the Western World – inspirou a irmã Miriam Joseph e outras professoras a estudarem e aplicarem o Trivium no Saint Mary’s College, o que ocorreu em 1935, e que finalmente culminou nesta formidável obra que aqui tratamos.


1) Artes liberais – conceito clássico, esquematização medieval
triv1
















Ciências e Arte









Classes de bens:
Valiosos – conhecimento, virtude, saúde...
Úteis – alimento, remédio, dinheiro, etc.
Aprazíveis – felicidade, honra, prestígio, comida saborosa, etc.
As artes utilitárias ensinam a servir. As artes liberais ensinam a viver. Veritas vos libertatim.

Segundo Miriam, o Trivium foi usado sistematicamente na leitura e composição de clássicos latinos pelos garotos das grammar schools inglesas e européias. Shakespeare é o grande exemplo de talento formado nesse ensino, o que certamente ajuda a explicar a grandiosidade de sua obra.

O “Gramatica Grega”, de Dionísio da Trácia, mais antigo livro de gramática e base para os textos gramaticais durante pelo menos treze séculos, define assim o estudo da Gramática:
1) leitura instruída, c/ atenção à prosódia;
2) exposição, de acordo c/ figuras poéticas;
3) apresentação das peculiaridades dialéticas e de alusões;
4) revelação das etimologias;
5) relato cuidadoso das analogias;
6) crítica de obras poéticas, parte mais nobre da arte gramatical.


A educação liberal

Ressalta Miriam que as artes a serem ensinadas nesse modelo clássico são um caminho de duas vias entre professor e aluno.
Comunicação –> união de duas partes.
Assim, a educação liberal promove a “alimentação” do aluno, não a mera acumulação.
A extensão é uma característica apenas da matéria, enquanto o número é característica tanto da matéria quanto do espírito.
Função do Trivium – treinar a mente para estudar matéria e espírito. A educação gesta a cultura, que é, como Matthew Arnold definia:
O conhecimento de nós mesmos [mente] e do mundo [matéria].
É a cultura bem fundada que nos permite, também nas suas palavras, “ver a vida resolutamente; a vê-la por inteiro”.


As artes da linguagem

Metafísica – coisa tal como ela existe;
Lógica – coisa tal como ela é conhecida;
Gramática – coisa tal como ela é simbolizada.
A comunicação de sua existência (descoberta) a coloca no reino da retórica.
Miriam ilustra muito bem essas divisão ao utilizar o seguinte exemplo: Plutão já era entidade real antes de descoberto em 1930. A sua descoberta o pôs no reino da lógica. O seu nome o pôs no reino da gramática, e a comunicação de sua existência o pôs no reino da retórica.
Fonética – como combinar sons para formar corretamente as palavras escritas;
Ortografia – como combinar palavras para formar corretamente as frases;
Gramática – como combinar frases em parágrafos e estes numa composição;
Retórica – como combinar frases em parágrafos e estes numa composição que apresente unidade, coerência e ênfase desejada, bem como clareza, vigor e beleza;
Lógica – como combinar conceitos em juízos e estes em silogismos e cadeias de raciocínio de modo a obter a verdade.
A Retórica é a arte mestra do Trivium, pois pressupõe e faz uso da Gramática e da Lógica (é a Comunicação por excelência).

A Lógica é a arte das artes porque dirige o ato mesmo de raciocinar. Dizia Milton:
Pode haver muito uso da razão sem o falar, mas nenhum uso da palavra sem a razão.













O intelecto é aperfeiçoado pelas 5 virtudes intelectuais:
Teóricas:
  • Compreensão – captar intuitivamente os princípios primeiros;
  • Ciência – conhecer as causas mais prováveis;
  • Sabedoria – conhecer as causas fundamentais.
Práticas:
  • Prudência – raciocínio reto perante as ações (praxis);
  • Arte – raciocínio reto perante a produção (poiesis)


Enfim chegamos ao final da primeira parte. Fiquem no aguardo; há muitas partes a serem postadas nesta longa e interessantíssima série.

Obrigado.

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