segunda-feira, 4 de janeiro de 2010

O Banquete de Florença – II

LIVRO II
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Cap. 1
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Hora de zarpar para o oceano, diz Dante. Este é um capítulo seminal nos trabalhos do florentino, porque é aqui que ele expõe os famosos quatro níveis de sentido na interpretação de uma obra. São eles:

1) Literal
2) Alegórico
3) Moral
4) Analógico

Sobre a interpretação alegórica, Dante distingue entre a alegoria dos poetas e a alegoria dos teólogos. A alegoria teológica insiste na veracidade, na realidade dos quatro níveis de sentido, sempre se referindo a algum aspecto do Cristo histórico, enquanto os poetas admitem um nível literal que não seja verdadeiro, que seja somente “veritade ascosa sotta bella menzogna”, verdade escondida sob uma bela mentira.

Segundo Dante, o nível literal sempre vem primeiro, porque não se pode passar para o interior de algo sem se passar antes pelo exterior, assim como é impossível atingir a forma sem antes perceber alguma matéria. Aristóteles, na Física, diz que a natureza dispõe o nosso pensamento de forma a preferencialmente nos dirigirmos do mais conhecido para o menos conhecido (fazendo a analogia com as línguas, o latim prima por esta disposição natural em sua sintaxe, exprimindo as coisas na ordem em que elas impressionam o espírito, enquanto o português, por exemplo, segue uma ordem gramatical, artificial, como mostrava Sebastião Albuquerque no excelente Arte de traduzir de latim para portuguez, reduzida a principios (1818)).
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Cap. 3
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Embora não saibamos a natureza das coisas superiores como sabemos das inferiores, o mesmo o conhecimento limitado daquelas nos deleita muito mais (Aristóteles).

Dante cita os erros astronômicos do estagirita, porém lembra que no livro XII da Metafísica ele se desculpava de antemão por seguir “obrigatoriamente” a opinião dos especialistas de sua época.

O florentino aborda o sistema de Ptolomeu, listando as 9 esferas celetes, ou céus móveis, que irão aparecer no Paradiso de Dante:

1ª céu – Lua
2ª céu – Mercúrio
3ª céu – Vênus
4ª céu – Sol
5ª céu – Marte
6ª céu – Júpiter
7ª céu – Saturno
8ª céu – Estrelas

O 9º é o primum mobile, imperceptível aos sentidos, exceto pelo movimento dos outros oito. Exterior a todos esses, os católicos colocam um décimo céu, o céu empíreo, ou “céu das chamas”, ou “céu luminoso”, que seria “imobilidade e paz”, lugar dos espíritos santificados, contendo a si mesmo. É o edifício supremo – não está no espaço, mas formado unicamente na “mente primária” (a protonoe dos gregos).

Cada céu abaixo do décimo possui dois pólos estacionários, que no nono céu são também fixos, imutáveis. Cada céu tem um equador onde se dá o seu mais rápido movimento, por compensação espacial. No equador é onde há mais vida, mais forma, mais virtude, porque se encontra mais próximo do céu imediatamente superior.

Por fim, Dante afirma que esta seqüência de dez céus não chega a compreender todos os que existem, e cita o epiciclo de Vênus, que possui a excentricidade de conter uma esfera dentro de outra esfera.
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Cap. 4
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Quem move essas esferas? As inteligências, ou anjos.

Para Aristóteles, eram de número limitado, enquanto seu mestre Platão adotava a infinitude de formas. Para os pagãos, elas equivalem aos seus deuses.

Dante diz que todos estes falharam em suas percepções. Segundo ele, uma vez que a vida contemplativa é superior à vida ativa, governante, o número de esferas deve necessariamente ser muito maior do que o revelam seus efeitos, porque há muito mais bênção na pura contemplação do que na ação próxima.

Nenhum efeito pode ser maior do que a sua causa; assim, Deus, causa de tudo e de todos os intelectos, está por demais além de nossa percepção em suas ações.
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Cap. 5
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Jesus Cristo é o “ministro” dos anjos. Dante segue a ordem hierárquica angélica estabelecida por Gregório no livro XXXII de seu Moralia:

1ª ordem: Serafins (acima de todos), Querubins, Tronos
2ª ordem: Dominações, Principados, Potestades
3ª ordem: Virtudes, Anjos, Arcanjos

(no Paradiso, Dante adota a ordem de Dionísio Areopagita: Serafins, Querubins, Tronos, Dominações, Virtudes, Potestades, Principados, Arcanos e Anjos)

Podemos contemplar a divindade por qualquer uma das hierarquias.

Na 1ª, contemplamos o Pai, na 2ª o Filho e na 3ª o Espírito Santo.
O Serafim percebe mais da primeira causa (Pai) do que qualquer outro anjo.
O Querubim contempla o Pai em relação ao Filho.
As Potestades contemplam Pai em relação ao Espírito Santo.

Algumas das ordens originárias tiveram sua queda para o Inferno.

Segundo Dante, os Anjos são simbolizados pela Lua, os Arcanjos por Mercúrio e os Tronos por Vênus. Como diz o Salmo 18: “Os céus publicam a glória de Deus, e o firmamento anuncia as obras das suas mãos”.

No capítulo 6, o florentino afirma que os anjos não possuem corpo, e, por isso, não sentem nem usam a linguagem. O ouvir deles é a atividade intelectual.
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Cap. 7
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Devemos notar que as coisas têm que ser chamadas de acordo com a maior nobreza de sua forma (...) assim, quando dizemos que um homem vive, o que se pretende dar a entender é que ele usa a razão

É por isso que o homem que se fundamenta no sensível não vive como um homem, mas vive a vida de “um asno”, como dizia Boécio.

O conflito de Dante: o desejo de compreender a “doçura” da sabedoria é tão imenso que faz a sua alma ter o anseio de morrer, de ir “para lá” e ter a mais doce das contemplações do universo. É por isso que o florentino diz que os olhos da Donna (Filosofia) não devem ser observados por qualquer um que tema as visões de angústia. A contemplação anelada fará tudo parecer extrinsecamente carente de beleza, enquanto, em seu âmago, as coisas se tornarão realmente belas.
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Cap. 8
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Por que o “novo” amor, este, que é efeito da ação das Inteligências (esferas), tem que destruir o amor anterior?

Dante responde que isso é obra dos próprios sujeitos na preservação do amor, assim como a natureza humana transfere a sua própria preservação na forma humana de pai para filho porque não pode preservar seu efeito perpetuamente no pai.

Para Dante, a maior das tolices é acreditar que não há vida apos a morte. Todos os grandes sábios concordam com a imortalidade d’alma. Toda crença, até mesmo a pagã, crê nisso. O homem é o mais perfeito dos animais; se nossa crença natural na outra vida fosse errada, fosse vã, seríamos, pelo contrário, os piores dentre todos os animais; a maior perfeição do homem – a razão – seria, assim, sua maior imperfeição.

Outra prova da imortalidade d’alma para Dante são os nossos sonhos, pois aquilo que é “revelado” neles deve necessariamente ser imortal.

Nossos corpos é que não nos permitem “ver” perfeitamente.

Com a , vemos perfeitamente.

Com a razão, vemos com sombras (mistura mortal/imortal).

sábado, 26 de dezembro de 2009

O Banquete de Florença - I

Olá, amigos, peço desculpas pela minha relativa ausência no último mês.
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Felizmente, tenho um belo subterfúgio para me justificar: a esquematização da Revista Filosofia Concreta, além da preparação de outros projetos culturais que vêm por aí em 2010; fiquem atentos.
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De todo modo, prometo voltar a postar mais seguido neste blog, rotina da qual me aproveito para “oxigenar” minhas antigas leituras filosóficas, o que sempre rende lá os seus frutos.
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Com isto, tratemos agora desta nossa caríssima atividade.
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imageApresentaremos nas próximas semanas algumas das tantas pérolas que podem ser encontradas na obra Convivio, de Dante Alighieri (em geral traduzida como “O Banquete”, inspiração platônica). Aproveitar-me-ei do resumo exposto em Dante, livro de W.B. Lewis, de modo a não atalhar a leitura daqueles que ainda desconheçam a obra:

Com o intuito de ilustrar os méritos que reconhecia na canzone como forma poética, Dante propõe, no Convivio, examinar uma série de canzoni escritas por ele próprio ao longo de vários anos, sem deixar de refletir, detidamente, sobre a questão do autor que analisa a própria obra. O Convivio, como o título já indica, é um banquete, uma festa de sabedoria em que todos os homens de boa vontade são convidados a participar – com base na premissa de que Aristóteles está certo quando afirma, no início da Metafísica, que todos os homens, por natureza, aspiram ao conhecimento. Nesse banquete, o cardápio inclui uma seqüência de 14 pratos, 14 canzoni a serem examinadas e digeridas. Na verdade, o autor analisa apenas três, visto que o tratado é interrompido após a conclusão do quarto livro, i.e., após cerca de 250 páginas.

O Convivio foi escrito entre 1306 e 1308. É possível que a primeira parte da obra tenha sido composta em Lucca, logo após a interrupção do De Vulgari Eloquentia. O restante teria sido elaborado “na estrada”, por assim dizer. Essa condição itinerante é visível no texto, ao mesmo tempo o mais abstrato e o mais pessoal escrito por Dante até então. A postura pessoal é, precisamente, a do andarilho infeliz, rezando para ser readmitido ao lar (...) [havia sido expulso de Florença].

Lembramos também que essa obra de Dante, talvez por ele estar experimentando à época um momento de profunda amargura, teve como grande modelo o Consolatione Philosophiae de Boécio, sobre o qual bem tratamos na série anterior de posts. Pretendemos, fica claro, seguir banhando os leitores com o espírito da Filosofia Perene conforme expresso nas mais egrégias obras da tradição ocidental.
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LIVRO I
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Cap. 1
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Como diz “O Filósofo” (Aristóteles, segundo seu cognome na Idade Média): “todo homem por natureza deseja conhecer”, assim como toda coisa se inclina à sua perfeição, porque o conhecimento é a mais alta perfeição d’alma.
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O que impede o conhecimento no homem é:

o corpo, por sua imperfeição sensitiva;
a alma, por sua corrupção, malícia, vício;
a necessidade, por suas responsabilidades civis e/ou domésticas,
e a indolência, por prostrar o homem em uma localização desprivilegiada, longe das fontes de conhecimento, etc.

Segundo Dante, o primeiro e o terceiro impedimentos (corpo e necessidade) são perdoáveis enquanto tais.
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Se há uma grande compaixão n’alma do intelectual, ela se expressa, diz o florentino, na generosidade em transmitir o conhecimento aos que forem intelectualmente “desfavorecidos” pelas razões acima elencadas.
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Explicando o título de sua obra, Dante traça uma analogia entre “carne” e poesia, “pão” e seus comentários, porque igualmente vivaz e prazerosamente repartidos entre os amigos à mesa. Aproveita ele para lembrar que, ao modo da anterior La Vita Nuova, o Convivio também se caracteriza pelo prosimetrum, a composição que adota junto aos versos a prosa para que possa bem digeri-los e igualmente apresentar suas perspectivas sobre as coisas.
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Cap. 4
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Tendo, entre outras queixas, lamentado nos cap. 2 e 3 a má fama que adquirira em suas viagens pela Itália, Dante se põe a explicar o porquê da “presença” (física) de um homem sempre diminuir a estima que outrora gozava entre as pessoas. Lista ele três razões possíveis para a redução da estima: imaturidade mental e inveja, ambas causadas pela imperfeição do julgador, e a imperfeição real do próprio julgado.
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Muito lamenta Dante que os homens em geral só entendam as coisas pelo seu exterior:

A maioria dos homens vive de acordo com os sentidos e não de acordo com a razão – como crianças.

A inveja provém da incapacidade de pessoas más em suportar serem iguais a pessoas de superior excelência.

(...) elas vêem partes do corpo e capacidades muito parecidas às delas e temem.

Agostinho dizia que não há ninguém perfeito neste mundo. A “presença” de que fala Dante acaba revelando imperfeições que maculam o “brilhantismo” da pessoa famosa; por esta razão são os profetas menos louvados em suas terras. Assim, Dante defende que o homem restrinja sua privacidade, que dê limite à sua presença pública.
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Sem jamais esquecer, é claro, que a “presença” também pode diminuir os traços de infâmia.
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Dante lamenta que sua grande fama na Itália tenha se tornado ordinária – e, devido a isso, tentará recuperá-la adotando nesta obra, segundo ele, um estilo mais “eminente”.
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Cap. 13
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Arrematando os oito capítulos anteriores onde havia buscado justificar a utilização da língua italiana em detrimento do latim no Convivio, Dante afirma que o homem possui duas perfeições:

Primária – causa sua existência

Secundária – causa sua bondade

Não é impossível, diz Aristóteles no livro II da Física, que uma coisa possua diferentes causas eficientes, contudo uma deve ser a principal (o fogo e o martelo causam a faca, embora seja o ferreiro a sua principal causa).
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Ora, ressalta Dante, pois foi justo o vernáculo italiano que aproximou os seus pais para que o pudessem conceber. Foi o vernacular que colocou Dante no caminho do conhecimento, pelo qual chegou finalmente ao latim e às ciências. Deve o florentino no mínimo honrar esta língua, assim o julga.
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Todas as coisas por natureza buscam sua própria preservação; com o vernacular não é diferente. Dante estabeleceu com o italiano uma amizade e uma harmonia que se encontram claramente expressas na métrica e na rima das canzoni aqui dispostas. Autor e língua, assim, acabam por dividir o mesmo propósito, o mesmo fim. Que bela declaração de amor por uma língua! Quem sabe, uma vez dotados desse espírito, não cometêssemos assim tantos estupros contra nosso injustamente vilipendiado Português!
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Na semana que vem, seguiremos postando mais algumas pérolas do Convivio de Dante. Aguardem.

terça-feira, 8 de dezembro de 2009

Consolação da Filosofia, por Boécio - V

Fortuna e Providência

Nada é criado sem propósito.

Providência = razão divina(conhecimento de tudo antes de acontecer)
A imagem do quadro na mente.

Destino (fortuna) = o trabalho de Deus dia a dia (destinação de formas, lugares, estações, proporções a todas as coisas)
O quadro sendo pintado.

Antes de acontecer, é providência; acontecido, é destino.

Nem tudo está sujeito ao destino, mas o que está sujeito ao destino forçosamente está sujeito à divina Providência.

A Filosofia expõe uma analogia sensacional:

As rodas de uma carroça giram sobre o eixo estático (Deus); o centro da roda (o homem bom e sábio) gira mais firme do que as bordas; os raios da roda são como os homens médios, em uma extremidade firmes e na outra muito rápidos (os maus) (assim, mesmo os piores homens estão conectados com Deus). A roda é o destino (roda da fortuna); o eixo é a Providência.

Todo destino é bom, pois ou recompensa ou pune.

A Filosofia questiona o julgamento dos homens sobre outros homens. Sabemos de suas ações, mas e do que se passa em seus espíritos, sabemos?

Ninguém é melhor avalista da alma do que Deus. Ele pune os maus e honra os bons. Muito acontece de julgarmos um homem como Deus nos julga. Há homens muito maus que não põem seus desejos em ação e vice-versa. Alguns bons homens podem ter seu poder arrancado para não comprometerem sua bondade. O homem sábio não deve amar a felicidade mundana além da conta, pois seguido ela é dada aos piores homens.

A Filosofia salmodia sobre a incrível ordem e harmonia do universo, o amor que tudo tem em seu servir a Deus, e o contentamento com o governo divino; do contrário, nada existiria. Servir ao Criador é existir.

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Sobre o livre-arbítrio

Boécio pergunta se temos livre-arbítrio, face à predestinação.

A Filosofia responde que todo homem possui liberdade, considerando que ele sabe o que quer. A razão traz discernimento, e o discernimento é o livre-arbítrio. Quanto mais próxima de Deus a mente do homem, mais livre; quanto mais presa a este mundo, menos livre.

Boécio fica perplexo com uma nova dúvida: se Deus predestina, como permite que o mal seja escolhido?

A Filosofia lhe rebate com uma outra pergunta: aprazaria a alguém, sendo um rei, ter como servos somente escravos?

Boécio insiste; não entende que propósito existe em rezar sobre o que já é predestinado.

A Filosofia diz que muitos já passaram pela mesma angústia. Cícero é um dos que não puderam resolver a questão por suas mentes estarem muito imersas em desejos mundanos.

Ademais, muito já foi dito aqui sobre a bondade como reguladora do mundo, o mal que não existe em si e por si.

Boécio pergunta: tudo o que Deus conhece deve acontecer irrevogavelmente?

A Filosofia responde: não irrevogavelmente, mas parte deve acontecer – o que é necessário para nós e desejado por ele. Além disso, há as coisas possíveis, que em seu acontecimento ou não-acontecimento não causam danos. Deus sabe tudo, e há coisas que ele pode desejar prevenir.

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O que é a eternidade?

É a pergunta de Boécio.

A Filosofia diz que há três coisas sobre a terra:

1) as que duram um tempo, tendo começo e fim;
2) as que são eternas, com começo mas sem fim (como os anjos e almas humanas) e
3) a que é eterna, sem começo e sem fim, que é Deus.

Para nós, só existe o que está no tempo. Para Deus, tudo é presente.

Por isso, jamais deixe de se curvar diante dEle, pois que é todo-poderoso, todo bem, todo tempo. Busque-o, faça o bem, ame a virtude!

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Finda aqui o resumo dessa grande obra.

Na próxima semana, exporemos alguns excertos da encantadora pérola filosófica de Dante Alighieri, o Convivio (O Banquete).

domingo, 6 de dezembro de 2009

Consolação da Filosofia, por Boécio - IV

A natureza

O Criador deu um nome a todas as criaturas e depois o dividiu em quatro elementos: terra, água, ar e fogo, cada um com seu local e distinção, embora ligados em “laços de paz”.

Pela sua ordem, o mais inferior é a Terra, fria e seca, depois a Água, fria e úmida; o Ar, por sua vez, se distingue por ser ou frio, ou úmido, ou quente, já que foi criado entre a Terra e o Fogo; o Fogo é o mais elevado; acima de todos, embora misturado com todos (grande semelhança com o nous de Anaxágoras). Todos são fundamentais na natureza, estão em tudo.

“Não há menos d’alma no dedo mínimo do que no corpo inteiro”.

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A alma

A alma é tripartite (Platão), dividida em desejo e paixão, comuns entre homens e animais, e razão, virtude especial ao homem, que deve controlar as outras.

“[A alma] quando pensa no seu Criador, está acima de sí própria; quando reflete sobre si mesma está em si própria; e está abaixo de si própria quando ama essas coisas mundanas e as admira”.

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O bem

Toda forma de bem vem de Deus e retorna a Ele. Deus é o bem perfeito, ao qual não falta desejo algum. Nenhum homem recebe o prazer pela coisa em si, mas pelo bem que ele ganha através delas. Todo desejo emana do sumo Bem.

“Não consegues entender que se nada fosse completo, então nada estaria faltando, e que se nada estivesse faltando, nada estaria completo? (...) É assaz evidente que o bem perfeito existiu antes do bem imperfeito”.

A bondade de Deus não pode ser extrínseca, vir de fora, porque, do contrário, a origem da bondade seria melhor do que Ele. Ademais, a perfeição é a unidade, a unidade é a perfeição (qualquer coisa distinta de Deus que não estivesse nele o tornaria imperfeito). Assim, não há nada melhor do que Deus (e por isso o argumento de Anselmo é tão fabuloso).

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A suma felicidade

Em um diálogo bem platônico, a Mente deseja entender melhor o que é a suma felicidade.

Diz a Filosofia: todo o ser criado deseja a eternidade, tenha ele alma ou não, mesmo as plantas (o ciclo de morte das plantas e de suas sementes gerando novas plantas é uma amostra desse “ímpeto de continuidade”. Boécio entende, e cita a geração de proles entre os animais).

Desejando-se a vida eterna, deseja-se a única coisa que vive para sempre: Deus. Não se pode buscar nada acima dele, porque não pode haver.

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Da verdade

Um grão da verdade está sempre presente em nossas almas. Ele deve ser despertado com o questionamento e com o ensinamento, para poder crescer.

Segundo a Filosofia, Platão disse: “quem quer que não se lembre da bondade, deve se virar para sua memória, então lá encontrará a bondade, escondida entre a preguiça do corpo e as distrações e aflições da Mente”

A Filosofia lembra a Boécio que ele era mais confiante nos desígnios de Deus. Boécio admite a sua tolice: “Nenhum homem deseja resistir à vontade de seu criador, exceto os homens tolos ou os anjos rebeldes.”

Nada pode ir contra a vontade do todo-poderoso, embora alguns desejem. A Babilônia, na ambição de querer saber o que havia no Céu, foi atingida por Deus e teve a língua de seu povo dividida.

Não importa a quantidade de parábolas e exemplos, sempre a mente irá em busca daquilo que buscamos, que é Deus. Estes instrumentos não têm uso por si mesmos. Platão já avisava da importância das parábolas serem adaptadas às conjunturas de cada povo ao qual se deseja explicar a natureza das coisas. Na Grécia, a história de Orfeu e Euridice, p. ex., ensina aos homens que fogem da escuridão do inferno e vão em direção à luz da verdadeira bondade a nunca olharem para trás para seus antigos pecados, de modo a nunca retornar a eles.

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O mal no mundo

A infelicidade ainda persiste sobre Boécio, porque ele não consegue compreender a razão de Deus, todo bondade e poder, permitir que o mal exista no mundo. Homens maus têm poder e honrarias, e aos homens sábios e bons só resta o sofrimento.

A Filosofia responde que o Bem sempre tem poder, o Mal não, porque todas as criaturas desejam o bem, e os bons o desejam de forma correta, enquanto os maus buscam-no pelos caminhos errados. (como dois homens correndo em direção ao mesmo destino, só que o mau indo por estradas tortuosas e escuras).

Todo homem que deseja ser virtuoso deseja ser sábio. O bom é feliz, o feliz é abençoado.

Que um homem possa fazer o mal não é um poder, mas uma fraqueza”.

Nenhuma bondade passa sem recompensa, que é dada pela própria bondade. O mal, pelo contrário, só passa por punições.

Ao homem corrompido resta a bestialidade, porque a essência do homem verdadeiro é a unidade de corpo e alma. A um homem ambicioso e usurpador, não chame de homem, mas de lobo; ao furioso e rebelde, chame de cão de caça; ao falso e engenhoso, de raposa, e o que é selvagem e colérico, chame-o de leão.

Boécio segue lamentando, triste pelo mal ser tão mais praticado.

A Filosofia explica que, mesmo que fossem imortais, os maus sempre seriam miseráveis e infelizes.

“Que sua maldade passe impune nesta vida é o sinal mais claro do maior pecado neste mundo, e um penhor da mais terrível penalidade que estará por vir”.

Piores são aqueles que afirmam que os mais sábios nada podem ver do além, como eles. É como se as crianças se criassem todas perfeitas, mas, ao se tornarem adultas, algumas se corrompessem e afirmassem que todas ainda são igualmente perfeitas, ou igualmente corrompidas.

Ecoando Platão, diz ela que os homens punidos são mais felizes do que os que punem, porque os que praticam o mal são mais desgraçados do que os que o sofrem. Por outro lado, punir os maus é melhor do que melhorar a situação das suas vítimas, pois que a doença daqueles é mais profunda.

Deve o justo aplacar a raiva, amando os homens e odiando os seus pecados.

Mas o teimoso Boécio diz ainda não conseguir entender o triunfo do mal no mundo de Deus.

E então a Filosofia responde com um canto que lista diversas dúvidas que a mente dos homens tem em relação aos fenômenos do Universo (os diferentes trajetos das estrelas, o Sol que parece mergulhar no mar, etc.) Mas Deus, quando investigado, assim como o seu mundo natural, revela a Verdade.

Admite a Filosofia que o questionamento de Boécio é espinhoso, um dos grandes temas da Filosofia. Poucos pensadores chegaram a uma conclusão satisfatória.

quinta-feira, 3 de dezembro de 2009

A Consolação da Filosofia, por Boécio - III

Deus

A Filosofia exalta o Criador:

“Um criador existe sem dúvida alguma, e ele é o comandante dos céus e da terra e de todas as criaturas, visíveis e invisíveis. Ele é o Deus todo-poderoso.”

“O Deus todo-poderoso compeliu com o seu poder todas as suas criaturas, de modo que cada uma delas está em conflito com a outra, e ainda assim sustenta a outra, a fim de que elas não se desliguem entre si, mas voltem ao antigo curso para então começar novamente. Tamanha é a sua variação que as criaturas opostas conflitam umas com as outras e ao mesmo tempo preservam juntas a harmonia”.

Assim, um contrário não pode existir sem o outro e só pode ser medido pelo outro.

“Ó, quão feliz seria a humanidade se suas mentes fossem tão retas e firmemente estabelecidas, e tão ordenadas como é o restante da criação!”

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A busca pelo bem

Diz a Filosofia sobre a sua doutrina:

“É muito amarga à boca, e dói à garganta quando da primeira vez que você prova, mas vai ficando doce e chega muito suave ao estômago.”

O amargo antes do doce, a chuva antes do sol, assim é a verdadeira felicidade, as coisas boas da natureza sendo muito mais exaltadas quando precedidas das coisas desagradáveis.

“Todo mortal se aflige com diversas preocupações, e mesmo assim todos desejam chegar por muitos caminhos a um único fim; isto é, eles desejam por diversos meios atingir uma felicidade. Ora, esta não é outra além de Deus, o princípio e o fim de todo bem; Ele é a suma felicidade.”

Nada pode haver fora da felicidade suprema, que abarca todas as felicidades. Toda água sai do mar e a ele retorna.

A verdadeira felicidade não é um bem mundano, mas uma bênção divina, pois não é o destino que a produz, e sim Deus.

A Filosofia cita Epicuro, que classificava o prazer como o mais alto bem, porque, segundo ele, todas as formas de felicidade bajulam e encorajam a mente. Contudo, diz ela, o prazer por si mesmo bajula o corpo quase que de forma exclusiva.

Todos os homens desejam o bem, de uma forma ou de outra. Jamais cessam em seu querer, sempre buscam satisfazer todas as necessidades de modo a não mais possui-las, “mas só Deus não possui necessidades”. Deus não necessita nada, a não ser ele mesmo (como já afirmava Aristóteles).

O desejo em si não é mau. O que ocorre no homem é um erro no caminho até o desejo, que nunca é o mais reto, o mais verdadeiro.

Mas o ser humano pode se aperfeiçoar. Todos os seres se restringem às qualidades nas quais foram criados, exceto os homens e alguns anjos. Por mais que domestiquemos um leão, experimente dar-lhe sangue...

“Ó, vós, homens deste mundo, embora ajais como gado por vossa estupidez, mesmo assim podeis de alguma forma perceber, como num sonho, algo da sua origem, que é Deus”.

Embora não compreendamos as coisas totalmente, percebemos em toda busca pela felicidade um verdadeiro princípio e um verdadeiro fim.

“Tu és guiado por tua natureza em direção ao entendimento, mas é afastado dele por múltiplos erros”.

Boécio enfim admite: “Sei que falas a verdade. Eu era de fato miserável”.

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A cobiça é inextingüível

Quanto mais o homem possui, mais ele se curva ao desejo de possuir. A cobiça jamais extingüe a si mesma – ela só cresce, só se acumula, “pois o homem não pode tomar consigo desta terra nada mais do que a ela trouxe”.

O poder mundano nunca planta virtudes, e só colhe vícios. O poder alheio também eleva o vício pela inveja e pelo desprezo. Boécio não teria sido preso se emulasse o vício e a corrupção daqueles que concordaram com os terríveis atos e planos de Teodorico.

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As quatro virtudes

A Sabedoria, a mais sublime das virtudes, possui em si quatro outras virtudes: prudência, temperança, coragem e justiça, tornando os seus amantes sábios e valorosos, sóbrios, pacientes e justos.

A autoridade material não pode, pelo contrário, conceder virtude a ninguém.

A sabedoria vem de dentro; a autoridade, o poder, a fama, vêm de fora – não podem nunca pertencer a alguém, ao seu ser.

A Filosofia lembra Boécio das tantas histórias de reis que terminaram sem nada, e arremata, irônica:

“Certamente a riqueza é algo ótimo, a ponto de não poder preservar nem a si mesma nem ao seu senhor.”

Um rei pode dominar um povo inteiro, mas jamais os seus desejos. Um rei jamais vive em paz, o temor sempre o espreita. Um rei não é nada sem os seus servos.

Sobre a amizade baseada na riqueza: “O que é pior praga e maior dor a qualquer homem do que ter em sua companhia e proximidade um inimigo com a aparência de um amigo?”

“Quem tanto deseja ter poder deve antes lutar para ter poder sobre sua própria mente”.

“Ó, glória deste mundo! Ai de mim, por que os tolos com falsa voz te conclamam glória, quando tal não és?”

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A tolice do “bom berço”

Um homem é digno de louvor por si mesmo, não por seus pais, “pois todo mundo sabe que todos os homens vêm de um pai e uma mãe”.

“És tu mais justo pela justeza de outro?”

“A bondade e a nobre herança de um homem provém da mente e não da carne”.

O pai de todos os homens é Deus.

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Os prazeres criam dores

O desejo mau da luxúria disturba a mente de qualquer bom homem.

“Assim como a abelha deve morrer quando, em sua fúria, aferroa, deve também toda alma perecer depois da luxúria, a não ser que o homem retorne à virtude.”

A entrega à carne torna-a seu senhor e não seu servo, e é por isso o cúmulo do rebaixamento de um homem.

“Nem se tivesses o corpo maior do que o do elefante, ou se fosses mais forte do que o leão ou o touro, ou mais veloz do que o tigre, e o mais belo dos homens, ora, se procurasses a Sabedoria logo perceberias como todas estas qualidades não se comparam a uma única qualidade da alma.”

Assimo como a harmonia do Universo não pode ser comparada ao próprio Criador, a beleza corporal é tão frágil e fugaz como as flores.

Todo homem sabe onde procurar comida, onde procurar riquezas, mas é lamentável que não saiba onde procurar a verdadeira felicidade.

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A ignorância divide Deus

Boécio admite que a ignorância dos homens leva-os a dividir algo que é uno: Deus.

Segundo a Filosofia, o poder, a abundância, a glória, a dignidade e a bênção, só estão todas unidas em Deus. O homem comum idealiza, assim, somente uma parte de Deus, não compreende sua unidade. Portanto, nunca estará contente, porque “a riqueza suplica por poder, o poder suplica por honra, a honra suplica por glória”.

Que esperança de ser verdadeiramente feliz podemos ter então, pergunta Boécio.

Responde a Filosofia:

“Se qualquer homem desejar ter todas as felicidades em uma, desejará ter a mais elevada felicidade; mas ele não pode obtê-las em perfeição neste mundo.” (até mesmo porque sua vida aqui termina, é finita).

Portanto, nenhum homem deve esperar atingir a suma felicidade em sua vida presente. Por melhores que sejam, nenhuma dessas diferentes felicidades passa de uma mera impressão do Bem eterno.

domingo, 22 de novembro de 2009

A Consolação da Filosofia, por Boécio - II

A felicidade

A fortuna (destino) muda, e os homens também devem mudar com ela. Boécio deve a sua desgraça ao seu desejo pela felicidade mundana.

Nenhum homem, por mais feliz e materialmente realizado que seja, pode resistir à fortuna e ao sofrimento, pois quem tem de tudo teme por seu futuro, ou teme perder sua fonte de alegria. Uma coisa minúscula pode fazer o mais feliz dos homens vacilar em sua felicidade a ponto de pensar tê-la perdido totalmente. Por que então procuram a felicidade do lado de fora, quando ela lhes foi incutida por dentro, pelo poder divino?

O pináculo de toda a felicidade é a bondade.

A sabedoria, ao contrário da felicidade, jamais pode ser perdida. Por isso a fortuna não pode dar ao homem felicidade, pois tanto fortuna quanto felicidade são inconstantes.

“Além disso, o homem que possui estes bens mundanos, ou sabe que eles irão lhe deixar ou não sabe. Se não sabe, que felicidade pode haver na cegueira da ignorância? Se ele sabe, então vive no medo de perder aquilo que ele não pode duvidar de que pode perder; de modo que um pavor constante o impede de ser feliz”.

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O poder e a riqueza

Deus quer que o homem governe todas as outras criaturas, mas o homem se torna ele próprio seu escravo. Os ricos trazem para si inimigos, e o poder, que geralmente advém a homens muito maus, não é em sua natureza bom.

Quanto à fama, mesmo que ela seja mundial, possuirá um alcance estreitíssimo, a terra sendo um mero grão de areia no universo. Quando o destino vira as suas costas para um homem, presta-lhe um verdadeiro serviço, ao permitir que encontre o caminho para a bondade.

“Nenhuma casa pode suportar por muito tempo os fortes ventos no topo de uma alta montanha; nem resistirá às grandes chuva se construída sobre areia fina. (...) Quem quer que busque a felicidade eterna deve fugir do perigoso esplendor desta terra média, e construir a casa de sua mente sobre a rocha firme da humildade”.

“És tu quem dá valor à tua riqueza, ou ela é valiosa por sua própria natureza?

A riqueza cobiçada torna o homem odioso tanto para Deus quanto para os homens.

A virtude torna o homem amada por Deus e por aqueles (poucos) que a valorizam.

Tudo o que é dado é mais precioso do que é guardado e acumulado.

“Por mais rico que sejas, jamais tua riqueza será suficiente, e jamais a tua doação irá satisfazer totalmente a pobreza dos outros, bem como sua cobiça.”

Como pode o homem admirar mais a pedra preciosa do que a outro homem?

“Humilhamo-nos demais quando amamos mais o que é sujeito a nós do que amamos a nós mesmos, ou do que amamos o Senhor, que nos criou e nos deu todas as coisas boas”.

O que é realmente necessário? Comida, bebida, vestuário e implementos que ajudem à pessoa a exercitar alguns poderes naturais.

“Por que lamentas por uma beleza que não é tua? Tu te aprazarias naquilo que não te diz respeito, e naquilo que nem criaste nem possuis?”

Buscar as bênçãos e a glória de uma natureza mais elevada nas coisas inferiores, que perecem, é uma ofensa ao Criador, que deseja que todos os homens sejam senhores de todas as outras criaturas. O ser humano que não alça o seu desejo à altura do conhecimento que lhe foi dado é inferior às bestas (como já dizia Aristóteles).

“A natureza das bestas é não terem conhecimento de si mesmas, mas no homem é uma deformidade não possuir o auto-conhecimento”.

A Filosofia canta novamente, sobre quão afortunado era o homem antes dos prazeres materiais, quando seguia o caminho estrito da natureza. Lamenta: quem foi o primeiro infeliz a descobrir as pedras preciosas sobre a terra? Riqueza e poder transformaram-se em honras.

"(...) um homem nunca conquista a virtude e a excelência por sua autoridade, mas em razão de sua virtude e excelência é que ele atinge autoridade e poder.”
Se o poder fosse bom por sua própria natureza, jamais estimularia o mal. Pelo contrário, o poder dado a um homem mau não o melhora, mas o revela em sua maldade e corrupção.

Nero mandou queimar Roma para comparar o brilho das chamas com os relatos da destruição de Tróia; condenou à morte todos os grandes sábios da cidade, e matou até mesmo a própria mãe. Ainda assim, seu poder diminuiu, e tanto mais ele se regojizava.

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As necessidades de um rei

A Mente argumenta que nunca deleitou-se com a cobiça e com o poder terreno, mas que desejou instrumentos e matéria para pôr em prática o seu trabalho, sua responsabilidade e autoridade. Um rei sem terra povoada, sem homens de guerra, sem homens de fé e sem homens trabalhadores não pode excerticar seus “poderes naturais”, seu talento especial (trecho provavelmente construído por Alfred).

A Filosofia diz que muitos desejam o poder, mas poucos são dignos dele; aquele que é sábio e busca com vigor o bem sabe o quão frágil e carente de bondade é tal poder.

Ademais, quão limitado esse dito poder! Que tolo esforço de um homem em empregar duramente os seus dias para embelezar uma fama restrita a tão pequeno lote, “uma vez que a parte do mundo no qual reside o homem é só um ponto comparada ao resto”. É impossível o nome de um homem chegar a todos da mesma forma. Mesmo que se deseje toda a fama, é muito difícil que vários homens gostem do mesmo objeto, que dirá da mesma pessoa.

Outro erro é a idéia de honra eterna, pois há honras que escapam ao registro, ou mesmo à ação natural do tempo e do esquecimento. De qualquer forma, mesmo dez mil anos não seriam nada comparados à eternidade, e quem busca o bem busca a eternidade (não pode haver comparação alguma entre finito e infinito).

“Isto [a fama de curto prazo, a mais comum] tu buscas conquistar negligenciando os poderes de tua razão, de teu entendimento, e de teu juízo; desejando ter como recompensa de tuas boas ações o bom relato de homens que nem conheces, uma recompensa que deverias buscar unicamente de Deus”.

Ademais, a alma é imortal, o corpo perece.

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A morte

Embora a mente deseje toda a glória terrena, a morte não está nem aí.

“Ela não dá atenção ao bom berço, mas engole tanto os poderosos quanto os inferiores, e assim coloca o grande e o pequeno no mesmo nível.”

Além disso, mesmo a fama falha com muita gente após a sua morte.

“Não penses que sou teimosa em minha luta contra a fortuna, eu mesma não a temo, pois freqüentemente acontece do destino não poder ajudar nem prejudicar um homem. Ela não merece nenhum louvor, pois por si mesma declara o seu vazio.”

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A adversidade é superior à prosperidade (felicidade mundana).

A felicidade verdadeira, constante e cumpridora de suas promessas é superior à falsa felicidade, que trai suas amizades e que prima pela inconstância. A felicidade verdadeira é libertadora de ilusões, a falsa é ilusória. A felicidade na adversidade é sóbria, é clara; a felicidade na prosperidade é precipitada, é ignorante e turva.

O que você daria para distingüir claramente amigos de inimigos?

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A Felicidade

Boécio admite estar muito confortado pelas palavras da Filosofia, mas gostaria de ouvir mais. No que consiste a verdadeira felicidade?

A Filosofia discute a natureza do bem supremo e mostra como todos os homens, mesmo os piores, desejam atingi-lo. Este bem não reside no poder, nem na riqueza, nem na fama, nem no bom berço, nem no prazer carnal; reside em Deus. Os homens podem participar na felicidade e assim atingir a divindade.

O Mal não tem existência, pois Deus, que pode fazer todas as coisas, não pode fazer o mal (o próprio ato de criação do mundo é uma bondade; maldade seria o nada).

quinta-feira, 19 de novembro de 2009

A Consolação da Filosofia, por Boécio

Boethius

Boécio (480-524 AD) foi uma importantíssimo filósofo neoplatônico. Considerado por muitos como a “ponte” entre a filosofia antiga e a medieval, ajudou a construir o pensamento que dominaria a Europa pré-escolástica (séc. V ao séc. XI). Segundo o grande historiador Edward Gibbon, Boécio foi “o último dos romanos que Catão ou Túlio poderia ter tomado como seu compatriota”.

Nobre de sangue eminente, serviu como cônsul e senador no reino ostrogodo do ariano Teodorico, que lhe tinha em grande estima. Entretanto, ao combater os maus elementos da política romana, acaba ganhando um punhado de inimigos, que começam a tramar a sua queda. O rei passa a mostrar sinais de intolerância; envia o Papa João I a Justino em uma humilhante missão a Constantinopla, depois o prende para morrer de fome e inanição. A partir de então Teodorico escutaria as acusações contra Boécio, segundo as quais este estaria por trás de uma conspiração contra o seu poder imperial. Nem a famosa eloqüência de Boécio o salvaria agora. O Senado o confina em uma masmorra em Ticinum (moderna Pávia) e confisca suas propriedades.

Após muitos meses de cárcere, durante os quais comporia a sua famosa obra, seria torturado e morto.

Contemporâneos de Boécio, como Prisciano, Cassiodoro e Enódio tinham-no como o homem mais intelectual de sua época. Profundamente versado nas obras dos fílósofos gregos, chegou a traduzir algumas para o latim. Por séculos, os medievais só puderam conhecer Aristóteles quase que exclusivamente por intermédio das traduções e comentários de Boécio. Possuía também grande talento para matemática, ciência, engenharia prática, e seu trabalho sobre música ecoaria no ocidente por séculos.

Após sua morte, foi tomado como mártir da fé ortodoxa, sendo canonizado por São Severino. Muitos trabalhos de teologia doutrinal lhe foram atribuídos, mas há uma discussão moderna em torno disso (há quem duvide até do seu cristianismo).

A obra

http://etext.virginia.edu/latin/boethius/boephil.html

A Consolatione Philosophiae era o vade mecum filosófico da Idade Média. Sua influência e popularidade só poderia ser comparada à De Officis de Cícero e, posteriormente, à Imitação de Cristo de Kempis. Foi um dos primeiros livros impressos na Europa após a revolucionária invenção de Gutemberg.

Quando as rudes línguas européias começaram a ser articuladas em prosa, surgiram versões do livro de Boécio no vernacular. Destas primeiras traduções, a do rei Alfred o Grande foi a primeira, seguida um século depois por uma versão literal no dialeto alemânico do old high german, no famoso monastério de São Gall, pelo monge Notker. Houve versões também em provençal antigo, em quatro edições francesas nos séc. XIII e XIV. Na Inglaterra, Geoffrey Chaucer fez uma tradução em prosa, sendo seguido por muitos outros, até mesmo a rainha Elizabeth I, em cuja época já havia versões em italiano, espanhol e grego. Thomas More mantinha uma cópia consigo quando na prisão, chegando até mesmo a compor uma versão própria, identificando-se com a angústia pela qual passara Boécio.

Sua influência na literatura européia é imensa. Há traços da obra em Beowulf, nos poemas de Chaucer, em Gower, em Lydgate, em Spenser, em Dante e Boccaccio.

Boécio, confinado em sua masmorra, conseguiu expressar de forma belíssima o confronto entre a sua ardente aflição face à iminente morte e a profunda sabedoria que sua alma ainda mantinha. Compondo um memorável diálogo entre a Dama Filosofia e o conflituosa Mente, demonstra como a primeira, iluminada pela verdade divina, é capaz de aplacar toda a dor existencial que sobrevenha à segunda.

É, sem dúvidas, uma obra para todos os tempos.

Sobre a tradução de Alfred, o Grande

A versão estudada aqui é a de Alfred, o Grande (849-899), rei dos anglo-saxões e um dos maiores responsáveis por tornar o livro popular na alta Idade Média. Além de grande líder militar e político, tendo impedido a invasão viking e unificado os reinos saxões, também empreendeu traduções de importantes obras, como Pastoral Care, Orosius e, claro, The Consolation of Philosophy of Boethius.

A religião e o aprendizado eram fundamentais para Alfred, uma espécie de “Carlos Magno da Bretanha”, amante dos livros e admirador dos intelectuais. Diante da ignorância na qual tinha mergulhado o seu povo após os terríveis confrontos com os vikings, sabia que a educação era fundamental para que a região voltasse a prosperar. Em um trecho da Consolação, Alfred lamenta muito a decadência intelectual e cultural na qual havia caído sua amada terra.

Segundo o monge Asser, biógrafo de Alfred e homem de confiança em seu projeto cultural, uma das primeiras atitudes do governante foi fundar uma court school, ao modelo das escolas palatinas de Carlos Magno. Ambos tiveram lá suas dificuldades para aprovar a idéia entre os nobres de rude espírito guerreiro. Seguindo os passes do grande imperador franco, Alfred também buscou reunir eruditos de outras partes da Europa, tamanha a decadência dos clérigos sábios em seu reino.

Apesar de uma tarefa claramente prazerosa para ele, a tradução da Consolação não deve ter sido nada fácil. O conhecimento de latim era muito limitado, e o próprio latim já havia sofrido suas mudanças até então (Asser tinha que ler em voz bem alta e explicar diversas questões).

Alfred não estava focado na cópia, mas na transposição do entendimento da obra para o seu povo, e nisto teve sucesso, pois seu inglês, segundo os filólogos, embora desprovido de arte e muitas vezes deselegante e falho, é suficientemente claro quanto ao sentido. Além disso, que referências de prosa em inglês tinha Alfred à época? Afora a tradução inglesa da Bíblia, todo o esforço literário que lhe precedera estava em verso (o qual floresceu muito ao norte da ilha). Bem sabia Alfred destas limitações, tanto que fez adaptações que achou necessárias, até mesmo omitindo e adicionando trechos (e aqui se revela a parte mais interessante da versão de Alfred). Por isso, muitos consideram o grande rei da Saxônia Ocidental como o primeiro autor de prosa literária da história inglesa.

O abade Ælfric, cerca de um século depois, reconhece o seu débito para com o rei Alfred; através de suas traduções, pôde ele próprio construir uma prosa inglesa mais suave e clara, mais elegante e mais repleta de nuances.

Voltando à versão de Alfred, é nitido o tom cristão impingido à obra, citando diversas vezes Deus, Cristo, anjos, demônios, etc, simpatizando com o lado católico de Boécio (que não é particularmente mostrado nessa obra) e desaprovando o arianismo de Teodorico. Com freqüência, Alfred até se esquece de sua tarefa de tradutor, revelando ainda mais o seu espírito e a energia com a qual abraçara a obra.

“Sempre foi meu desejo viver honradamente enquanto vivo, e, depois da minha morte, deixar para aqueles que devem vir depois de mim a minha memória em boas obras”

— Alfred

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A versão de Alfred está dividida em 4 livros e 42 capítulos, alternando cada trecho de prosa com um trecho poético. Decidimos, para facilitar a síntese, dividi-la em tópicos abordados.

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Introdução

O rei Teodorico era cristão mas com forte inclinação ao Arianismo. Prometeu aos romanos a amizade e o respeito, mas no fim incorreu em absurdos, como a morte do próprio Papa João. Alfred conta-nos a respeito da eminência de Boécio e de como este se abatia com a desonra que Teodorico representava à história dos césares. Boécio secretamente clamara por ajuda do imperador de Constantinopla, esta fora a razão de seu cárcere.

Enquanto Boécio lamenta a sua sina e o sumiço de sua alegria (“como pode ser feliz o que não reside em felicidade?”), aparece-lhe a Divina Filosofia, o espírito da Sabedoria, que o ergue e o incita a observá-la.

“Não és tu o homem que foi nutrido e ensinado em minha escola? Mas desde quando tu te afliges tanto com estas preocupações mundanas?”

A Filosofia clama contra o mundo sensual, e a Mente (Boécio) diz ter reencontrado sua “mãe de criação”, a Sabedoria, que lamenta:

“Ai de mim, quão profundo o abismo no qual a mente labora quando agitada pelas durezas da vida! Se ela esquece da própria luz, que é uma alegria eterna, e corre para a escuridão externa que são as preocupações mundanas, como agora faz esta Mente, nada mais ela conhece, exceto o sofrimento.”

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Boécio clama pela salvação

Boécio lamuria-se pela fortuna dos maus e a desgraça dos que buscaram a sabedoria. Depois, canta a Deus uma belíssima prece poética, louvando o poder divino e sua ordem, a qual só os homens ousam desobedecer.

“Ó, meu Senhor, tu que olhas por todas as criaturas, em tua amorosa bondade olhe agora por esta terra miserável, e também por toda a humanidade, pois ela agora se debate como as ondas deste mundo.”

A Filosofia logo põe Boécio de frente para a verdade:

“Ninguém te levou ao erro; foste tu mesmo, por tua própria desatenção”.

Segundo ela, não se poderia esperar isso de “um dos cidadãos da Jerusálem celestial”, e reitera que “nenhum homem é jamais banido, a não ser que ele mesmo tenha assim escolhido”.

A pobre Mente diz ter noção de que “tudo vem de Deus”, ao que a primeira responde: “Como podes então, sabendo o início, não saberes também o fim?”

A Filosofia pergunta à Mente se ela conhece a si mesma. “Sei que pertenço aos homens vivos e inteligentes, embora fadados a morrer”, e nada mais sabe a Mente de si – esta é a causa de sua melancolia. Segundo a Filosofia, não crer que a fortuna seja algo independente de Deus já é um bom começo para a cura, pela qual ela se responsabiliza.

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O erro de Boécio

A Filosofia diz a Boécio que o que ele antes tomava por felicidade não era bem felicidade. Os prazeres do mundo enganam os homens.

“Pensas tu que seja algo inédito ou raro o que veio a te acometer, como se jamais houvesse molestado outro homem?(...) Se pensas que é culpa tua que tua prosperidade mundana tenha se ido, então te equivocas, pois seus caminhos também se equivocam. Em ti ela só cumpriu com sua própria natureza, e por sua mudança fez-se conhecer a instabilidade que lhe é natural. (...) Aquela mesma prosperidade, a perda sobre a qual sofres, teria te deixado em paz tivesses tu a recusado; e agora ela te abandonou por sua própria vontade e não pela tua, de tal modo que nenhum homem a perde sem sofrimento.”

Como pode um homem se prender à riqueza quando já encontrou a sabedoria?

Como Boécio ousou imaginar que não seria afetado pelas mudanças do mundo, que sua vida e suas posses permaneceriam intocáveis?

“Como poderias tu estar no meio deste estado de mudanças, sem sentires também algum mal através da adversidade? O que mais os poetas cantariam sobre este mundo [que não isso]?

“Por que me culpas, ó, Mente? Por que estás irritada conosco? No que te ofendi? De fato tu estavas desejosa de mim, não eu de ti! Tu me colocaste na lugar do teu Criador quando nos procuraste para aquele bem pelo qual Ele é que tu deverias ter procurado. Tu dizes que eu te traí; mas, pelo contrário, posso dizer que tu é que me traíste, já que pelo teu desejo e ambição o Criador de todas as criaturas irá me abominar. Tu és, portanto, mais culpado do que eu, tanto por conta do teu próprio desejo ímpio, e também porque, através de ti, não posso realizar a vontade do meu Criador. Pois Ele me concedeu a ti para ser aproveitado de acordo com Seus mandamentos, não para realizar a vontade da tua injusta ganância.”

A mente confessa sua culpa, coberta de remorso.

“Eu não quero que tu te desesperes, mas que te envergonhes do teu erro”, ressalva a Filosofia, “pois aquele que se desespera não tem esperança, enquanto o que se envergonha está no caminho do arrependimento”

“E o que são as riquezas mundanas senão um aviso da morte? Porque a morte vem com nenhum outro propósito que não seja tirar a vida.”

A Filosofia canta sobre a inconstância das coisas naturais.

Boécio reconhece que o que tinha em sua vida comum não era a verdadeira felicidade.

A Filosofia ressalta o enorme valor que Boécio tem para sua esposa, que tudo mais ela esqueceu enquanto sofre pelo seu destino. Além disso, Boécio está vivo e com saúde; nenhuma aflição insuportável ainda lhe desceu sobre os ombros para se entregar dessa forma.

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No próximo post, continuaremos expondo o resumo dessa divina obra.